Saturday, November 29, 2008

À saúde

… o melhor era reunirem todos os factos e todos os acontecimentos num livro, e depois reduzirem esse livro a metade do tamanho, e assim sucessivamente, até conseguirem pôr todos os conhecimentos do mundo numa frase de dez palavras.… depois cada um decoraria apenas esta frase, tendo tempo, então, para se divertir a sério e beber copos de absinto, uns a seguir aos outros, como os Deuses recomendam.


Gonçalo M. Tavares

Friday, November 28, 2008

Pequenos grandes luxos

De vez em quando sabe-me bem por lá passar. Inaugurado no início do Verão passado, na praia da Galé, há já alguns anos que uma vez por outra visitava a casa-mãe, em Almancil, de forma que no meu caso em particular não constituiu exactamente uma surpresa. Contudo, para quem desconheça a família, ou as lojas Apolónia, confesso que em tudo serão surpreendidos. Aliás, este foi um projecto de raiz, em que a superfície estudada ao milímetro, mesmo sem recheio poder-se-ia considerar perfeita! Porém, o que se torna num regalo para os olhos é exactamente o que lá dentro encontramos. Ao entrar deparamo-nos com uma atraente e extensa área, com uma sanca iluminada, ilustrada de imagens que indicam as diferentes secções. Depois, o atendimento faz questão em ser personalizado, numa altura em que na maioria dos casos somos frequentemente negligenciados, para que os funcionários ponham as suas conversas entre eles em dia!? Mas, o que verdadeiramente me encanta é a enorme diversidade, e a qualidade dos produtos, na sua maioria importados, e o modo como estão expostos, a fazer lembrar-me o Harrodds de Londres, da minha adolescência. Desde o talho, à charcutaria, ao sushi feito na hora, aos legumes e frutas fora de época, a toda a variedade de vinhos que se possa imaginar, aos queijos, foie gras, chocolates e doces, e tantos outros produtos gourmet, tudo nos leva a embarcar numa experiência - única para os sentidos! Especialmente na época de alegria festiva que atravessamos, não deixe de apreciar a excelência que a Apolónia nos proporciona, absolutamente inigualável nas redondezas.

Thursday, November 27, 2008

Colinas de Outono

Procuro num atlas de memória
a geografia do teu corpo, desenhando
os contornos de água, as colinas brancas
do Outono, os vales onde os viajantes
se perdem, rios que nascem de um abismo
de fonte. E a sombra de uma nuvem
cobre o segredo do teu mapa,
para que adivinhe os caminhos, e
a viagem se transforme
em descoberta.



Nuno Júdice

Tuesday, November 25, 2008

Monday, November 24, 2008

A origem dos males

No século VIII a.c., o poeta Hesíodo descreve-nos Pandora - a primeira mulher criada pelos deuses, que à semelhança da bíblica Eva, nos surge com a finalidade de punir o homem, num acto de plena vingança. Por ordem expressa de Zeus, Hefesto modela-a em pedra, Minerva atribui-lhe vida com um simples sopro, Afrodite encarrega-se de lhe dar beleza, e Apolo da sua voz suave e graciosa. As Graças adornam-na com colares de ouro, e finalmente Hermes dota-a de persuasão e astúcia. Antes de ser enviada à Terra, é-lhe entregue uma caixa com a advertência de que jamais seja aberta. Do seu conteúdo fazia parte uma série de maldições e desgraças, desde a discórdia, à guerra, e a toda a espécie de doenças, e somente um dom. Vencida pela curiosidade, acaba por a abrir, libertando de uma assentada todos os infortúnios do mundo. Fecha-a porém de seguida, antes de deixar escapar a esperança. Na mitologia grega, Pandora surge-nos desta forma, com o intuito de seduzir o homem, provocando-lhe a destruição. Esta narrativa mitológica continua a fascinar-nos nos dias de hoje, por estar directamente ligada à história da humanidade, com tudo o que nos atormenta. Esta terá sido a metáfora encontrada pelos gregos, para através dum enredo de fácil compreensão, nos demonstrar os conceitos relacionados com a natureza feminina, e consequentemente o poder da aniquilação, restando-nos a esperança, como único meio de não lhe sucumbirmos às tragédias.

Saturday, November 22, 2008

No teu ombro

se eu te pedisse um verso apenas
que palavras dirias para fixar a sombra
dentro dos meus olhos? essa árvore
de onde nascem os pássaros quase azuis
de tanto poisarem no teu ombro


Francisco José Viegas

Friday, November 21, 2008

Thursday, November 20, 2008

Viradas para o rio

Após um período de adolescência, em que até a carteira do colégio partilhámos, seguindo diferentes rumos, os encontros passaram a ser fugazes, e na maioria das vezes apenas por ocasião de algum casamento, ou morte de um familiar. Porém, o acaso levou a que a voltasse a procurar, decorridos todos estes longos anos. Assim, quando pelo S. Martinho lhe bati à porta do seu novo apartamento citadino, foi num amplo open-space, com zonas distintas, que me recebeu. Numa breve visita guiada, espreitei-lhe os quartos, sinónimos de conforto e bem-estar, a banheira de hidromassagem, e o corredor transformado em galeria, com quadros de cada um dos filhos pendurados nas paredes. Regressamos à sala, onde um segundo olhar me remete para alguns móveis carregados de memória, de uma avó materna em comum. Seguidamente evocamos a juventude, na partilha dum tempo que já lá vai. Entrelaçamos episódios da vida, e falamos das inseguranças do que parecia seguro, do que aprendemos através da dor, do que faz sentido e da irracionalidade, e onde passámos a repousar as esperanças, sucumbindo de novo ao amor, quando Lisboa começa a anoitecer. Levantamo-nos seguindo a luminosidade que nos chega do exterior. É dum enorme terraço que entra pelo Tejo, com o infinito do céu sobre ambas, que me confidencia dialogar com o pai, que já partiu, em noites mais contemplativas. De dia recupera ânimos com a visita dos netos, que ali mesmo se dedicam às suas actividades favoritas, e tal como nós, perseguem sonhos daquele mesmo local. Mesmo aqueles desejos que nunca alcançaremos são os que na marcha do tempo nos farão continuar a caminhar. Antes de a deixar, ainda me oferece umas tartelettes de cebola e espinafres, que saem douradas do forno, da sua cozinha imaculadamente branca. E consolidando a tradição, o fim de tarde termina com castanhas cozidas em erva-doce, e a imprescindível água-pé. «Pelo S. Martinho prova o teu vinho, ao cabo de um ano já não te faz dano».

Wednesday, November 19, 2008

Dúvidas

Nunca chegará a saber
O que mais o inebria:
Se o cheiro e a música do Mar,
Se o cheiro e o silêncio da Terra.



David Mourão-Ferreira

Tuesday, November 18, 2008

Blindness

Há alguns anos li o livro, e ontem fui ver o filme, adaptado do romance de José Saramago. Ambos representam a metáfora sobre a realidade dos nossos dias, atraindo-nos para o centro da história, quando o distanciamento, e a incapacidade de ver o outro, e o que se passa à nossa volta, acaba por nos fragilizar. Um homem começa por perder a visão, alastrando-se a epidemia a toda uma cidade. Depois, à mercê de uma série de condicionantes em que tudo parece desabar, e os piores sentimentos sobem à tona de água, apenas nessa altura nos reconhecemos iguais, propondo-nos reorganizar como sociedade. Somente uma mulher vê, sendo a única a deparar-se com o terror a que a civilização humana está sujeita. Como testemunha, ela obriga-nos a reflectir sobre o que sentimos sobre a nossa própria cultura, ou a forma como a sociedade se encontra estruturada, alertando-nos as consciências para a falta de dignidade humana. Projecto amplo, e drama psicológico, que nos sugere uma alegoria política e filosófica, quando o medo toma conta de cada um de nós.

Não se orientavam, caminhavam rente aos prédios com os braços estendidos para a frente, continuamente esbarravam uns nos outros como as formigas que vão no carreiro, mas quando tal sucedia não se ouviam protestos, nem precisavam falar, uma das famílias despegava-se da parede, avançava ao comprido da que vinha em direcção contrária, e assim seguiam e continuavam até ao próximo encontro… Cegos que, vendo, não vêem.

José Saramago

Monday, November 17, 2008

Adversidades


Foi se sentindo mais feio, mais sozinho e mais infeliz do que nunca. Naquele ano, o inverno chegou cedo e foi muito rigoroso. O patinho feio precisava nadar ininterruptamente, para que a água não congelasse à volta de seu corpo, criando uma armadilha mortal. Mas era uma luta contínua e sem esperança.

Saturday, November 15, 2008

Um laivo de sol

O seu universo é vivo, e por detrás de um recital de poesia, musical e ritmado, reencontro-a alegre, ousada, e mais vibrante do que nunca. Realça-se-lhe o trajar alentejano – expoente máximo da total criatividade que a caracteriza, em homenagem a Manuel da Fonseca (1911-1993), que ela teve o prazer de conhecer - poeta e prosador, por muitos considerado um dos melhores escritores portugueses do neo-realismo. Desde a «Planície», à «Seara ao Vento», à «Aldeia Nova», ao «Cerromaior», ou ao «Fogo e as Cinzas» que o espaço físico e humano do Alentejo nos é retratado de uma forma real, simbólica, e metafórica, segundo tão bem dissertou o Dr. Manuel Serra. Sem dúvida um dos maiores vultos contemporâneos a denunciar todo o desespero de uma época, através da importante intervenção social e política dos seus textos.
Nas tertúlias da Zizi lançam-se alicerces, e reabilita-se todo um espaço estático, que a intriga palaciana, e a influência e o poder (do nada!?), assombram no seu dia a dia. Com o seu novo figurino, de uma forma eficaz e espontânea, ela simplesmente se superioriza, permitindo-nos ir muito mais além do que seria habitual.

Tu e eu meu amor
Meu amor eu e tu
Que o amor meu amor
É o nu contra nu.

Manuel da Fonseca

Friday, November 14, 2008

O palácio perdido


Há tempos que estava para lá ir, e aproveitando a visita dum casal estrangeiro amigo, pensei que seria uma óptima oportunidade para não adiar um antigo desejo. Assim, na véspera de lá nos deslocarmos, propus-me estudar a lição, imaginando antecipadamente o brilharete que iria fazer no dia seguinte. Da minha pesquisa fiquei a saber que apenas distava de Faro 10 km, e que o palácio de fins do sec. XVIII, em estilo rococó, teria em tempos pertencido ao Visconde de Estói, numa área de cerca de 4 hectares. Exigente comigo própria, e não me satisfazendo somente com uma breve consulta, recorri ainda à Elisa, conhecedora da sua região como ninguém, que me terá aconselhado nos últimos pormenores. Afinal nada poderia falhar. Porém, logo à entrada demos de caras com um cartaz que nos impedia a entrada, informando que ao contrário do previsto as obras prolongar-se-iam até final de Agosto!? Isto nada teria de caricato, se não se tivesse passado a meio do passado mês de Outubro!
Aliás não estávamos a contar visitar o palácio, que de antemão sabíamos encontrar-se em obras de recuperação. Dos espelhos e estuques marmoreados do seu interior, a lembrar Versalhes, teríamos já prescindido vislumbrar, mas dos exuberantes jardins com plantas exóticas seculares, e aparentemente de um monumental cipreste já lamentamos, assim como dos vários lagos, estátuas importadas de Itália de valor incalculável, e dos azulejos azuis e brancos, pelos quais pessoalmente sou absolutamente apaixonada.
No entanto estou em crer, que uma vez terminado o restauro, por parte da unidade hoteleira privada que o adquiriu, dificilmente o público voltará a ter acesso a este complexo arquitectónico, único nesta zona do país. Mesmo assim, com alguma dificuldade, consegui captar uma pequena amostra de fotos, que me ficará na memória, e permanecerá para a posteridade. De regresso a casa valeu-nos um arroz de peixe, macio, enriquecido de camarões, servido muito quente e polvilhado de coentros, a lembrar o último risotto que apreciei em Roma - qual experiência gustativa, acompanhado de um bom vinho alentejano, claro está!

Thursday, November 13, 2008

Lacuna

O homem não deve poder ver a sua própria cara. Isso é o que há de mais terrível. A natureza deu-lhe o dom de não a poder ver, assim como de não poder fitar os seus próprios olhos.
Só na água dos rios e dos lagos ele podia fitar seu rosto. E a postura, mesmo, que tinha de tomar, era simbólica. Tinha de se curvar, de se baixar para cometer a ignomínia de se ver.
O criador do espelho envenenou a alma humana.
Bernardo Soares

Tuesday, November 11, 2008

Monday, November 10, 2008

Terra à vista

Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.
Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.
Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.
Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.
- "Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal!"
- "Não vejo terras de Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar."
- "Acima, acima, gageiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal!"
- "Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal!
Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar."
- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar."
- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar."
- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar."
- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar."
- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."
- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."
- "Dar-te-ei a Nau Catrineta,
Para nela navegar."
- "Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar."
- "Que queres tu, meu gageiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?"
- "Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar!"
- "Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar."
Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;
E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.
Adaptação de Almeida Garrett

Friday, November 7, 2008

Em voz alta


Sem mais caber nos livros, eis que a sua poesia cristalina, exacta, e precisa, como se de geometria se tratasse, transborda pela voz de Afonso Dias – o anfitrião da noite, que guia toda uma plateia repleta de jovens, e menos jovens, na trajectória de toda uma existência.
Sophia de Mello Breyner Andresen encontra a essência da vida nas coisas mais pequenas, e sensível à realidade, empenha-se no combate desigual com feroz sarcasmo, projectando todo o seu sentido nos outros. O contacto real com a Grécia e o mar, que ela própria representa, constituem a compreensão da sua inspiração, que em voz alta evocámos apaixonadamente, num serão poético na Biblioteca Municipal.

Quando eu morrer voltarei para buscar
Os instantes que não vivi junto do mar.

Inscrição de Sophia de Mello Breyner Andresen

Thursday, November 6, 2008

Talvez

Deus – talvez esteja aqui, neste
pedaço de mim e de ti, ou naquilo que,
de ti, em mim ficou.

Nuno Júdice

Wednesday, November 5, 2008

A dimensão do olhar

Logo a abrir, apareces-me pousada sobre o Tejo como uma cidade de navegar. Não me admiro: sempre que me sinto em alturas de abranger o mundo, no pico dum miradouro ou sentado numa nuvem, vejo-te em cidade-nave, barca com ruas e jardins por dentro, e até a brisa que corre me sabe a sal.
Há ondas de mar aberto desenhadas nas tuas calçadas: há âncoras, há sereias. (…)
Em frente é o rio que corre para os meridianos do paraíso. O tal Tejo de que falam os cronistas enlouquecidos, povoando-os de tritões a cavalo de golfinhos.

José Cardoso Pires

Tuesday, November 4, 2008

A lógica dele

… Uma manhã apareci com uma flor para minha professora. Ela ficou muito
emocionada e disse que eu era um cavalheiro.
… E todos os dias fui tomando gosto pelas aulas e me aplicando cada vez mais.
Nunca viera uma queixa contra mim de lá.
… A escola. A flor. A flor. A escola…
Tudo ia muito bem quando Godofredo entrou na minha aula. Pediu licença e foi falar com D. Cecília Paim. Só sei que ele apontou a flor no copo. Depois saiu. Ela olhou para mim com tristeza. Quando terminou a aula, me chamou.
- Quero falar uma coisa com você, Zezé. Espere um pouco.
Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com vontade nenhuma de me falar e procurava coragem entre as coisas. Afinal se decidiu.
- Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zezé. É verdade?
Balancei a cabeça, afirmativamente.
- Da flor? É, sim senhora.
- Como é que você faz? - Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Serginho. Quando o portão está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta.
- Sim, mas isso não é direito. Você não deve fazer mais isso. Isso não é um roubo, mas já é um “furtinho”.
- Não é não, D. Cecília. O mundo não é de Deus? Tudo que tem no mundo não é de Deus? Então as flores são de Deus também…
Ela ficou espantada com a minha lógica.
- Só assim que eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa dinheiro…
E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio.

José Mauro de Vasconcelos

Sunday, November 2, 2008

Em contramão

Ela desce a avenida, eu subo-a. As nossas vidas distintas tocam-se apenas nesse instante em que ela vem e eu estou indo. Solitários ambos, caminhando os dois no princípio da manhã, procurando preencher o vazio dos domingos em que nada acontece no profundo e matinal silêncio. A vida dela descendo a avenida, a minha subindo. As nossas solidões em contra-mão.

Manuel Jorge Marmelo