Thursday, July 31, 2014

Na diagonal

Sabe o que se faz? Estende-se aí na areia, oblonga-se deitadinha, estica a alma na diagonal. Depois, fica assim, caladita, rentinha ao chão, até sentir a terra se enamorar de si. Digo-lhe, Dona: quando ficamos calados, igual a uma pedra, acabamos por escutar os sotaques da terra.


Mia Couto in Mar me quer

Wednesday, July 30, 2014

Que faremos?

Virás
quando houver uma fala indestrutível devolvida à boca dos mais vivos. Então
virás
vivo também. Sempre esperei ver-te ressuscitado. Desiludiste-me.
 E iremos com o plural de nós nos leitos menores onde o riso, onde o
leito do rio é um filho entre os dois. Que farei de teus braços de meus cabelos
benignos que faremos?

Luiza Neto Jorge in Difícil Poema de Amor – Poesia - Assírio & Alvim - 2ª edição - 2001

Tuesday, July 29, 2014

Um esboço

É nas linhas das mãos que os deuses escrevem
os mais belos romances. Nas nossas, porém, somente
elaboraram um divertimento, um esboço, um rascunho,
nem sequer literatura.


Maria do Rosário Pedreira in 
A casa e o cheiro dos livros

Monday, July 28, 2014

Quando

Todo homem é poeta quando está apaixonado.


Platão (427 ac - 347 ac)

Sunday, July 27, 2014

No enquadramento

Consciente do aroma, corria o risco de se perder nas recordações de um tempo anterior. A força dos sinais levava-a a redescobrir algo ainda não sedimentado tantas eram as fragrâncias tão diferenciadas. Num intervalo que, podia ser entendido como um breve instante, as possibilidades eram incontáveis, de contornos indefiníveis, e intensas. Ainda assim, não se sabia bem onde acabavam. Complexificando, caberiam provavelmente na preservação da sua memória mais distante. 

Saturday, July 26, 2014

Proposta artística


Friday, July 25, 2014

A nudez

Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.


António Ramos Rosa

Thursday, July 24, 2014

A desorientação



 Sem rumo certo, Alice continuou a andar quando, inesperadamente, encontrou um gato risonho: 
- Pode indicar-me o caminho que devo seguir? Disse a menina. 
- Humm! Mas para onde deseja ir? - perguntou o gato.  
- Não sei!...



Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas

Wednesday, July 23, 2014

A conflitualidade

O cessar-fogo ou as tréguas tardam, quando não parece haver resolução pacífica a curto prazo, numa realidade difícil de gerir. Sem eficácia nas acções internacionais e numa luta sem proporcionalidade, completamente entregues à sua sorte, o número de civis não pára de aumentar. Uma vez terminadas as hostilidades que mais ainda se seguirá?

Tuesday, July 22, 2014

Interrogação

que música serias
se não fosses água?


Eugénio de Andrade

Monday, July 21, 2014

Olhos de poeta


Ela entrou, deitou-se no divã e disse: "Acho que estou ficando louca". Eu fiquei em silêncio aguardando que ela me revelasse os sinais da sua loucura. "Um dos meus prazeres é cozinhar. Vou para a cozinha, corto as cebolas, os tomates, os pimentões - é uma alegria! Entretanto, faz uns dias, eu fui para a cozinha para fazer aquilo que já fizera centenas de vezes: cortar cebolas. Ato banal sem surpresas. Mas, cortada a cebola, eu olhei para ela e tive um susto. Percebi que nunca havia visto uma cebola. Aqueles anéis perfeitamente ajustados, a luz se refletindo neles: tive a impressão de estar vendo a rosácea de um vitral de catedral gótica. De repente, a cebola, de objeto a ser comido, se transformou em obra de arte para ser vista! E o pior é que o mesmo aconteceu quando cortei os tomates, os pimentões... Agora, tudo o que vejo me causa espanto."

Ela se calou, esperando o meu diagnóstico. Eu me levantei, fui à estante de livros e de lá retirei as "Odes Elementales", de Pablo Neruda. Procurei a "Ode à Cebola" e lhe disse: "Essa perturbação ocular que a acometeu é comum entre os poetas. Veja o que Neruda disse de uma cebola igual àquela que lhe causou assombro: 'Rosa de água com escamas de cristal'. Não, você não está louca. Você ganhou olhos de poeta... Os poetas ensinam a ver".

Rubem Alves (escritor brasileiro 1933-2014) da versão on line da «Folha de S. Paulo» de 26 de Outubro de 2004

Saturday, July 19, 2014

A retórica dos gestos


Friday, July 18, 2014

A voz do mar

Torno a ver o azul, e chega mais alto até mim o imenso eco prolongado... Basta pegar num velho búzio para se perceber distintamente a grande voz do mar.


 Raúl Brandão in Os Pescadores 

Thursday, July 17, 2014

Em queda

O desempenho parecia sólido e positivo a longo prazo. Mas, a qualquer momento, podia dramaticamente alterar-se. Antecipando o que já era previsível, de uma posição de controlo absoluto torna-se desmerecedor e perde toda a legitimidade. É nesta altura que lança o caos num universo já por si especulativo. 

Wednesday, July 16, 2014

O confronto

Aos cinquenta anos dei por mim a fumar ao espelho e a perguntar E agora, José. Fumar ao espelho, qualquer José sabe isso, é confrontarmo-nos com o nosso rosto mais quotidiano e mais pensado. Por trás, em fundo, tem-se um cenário do presente imediato (a porta do quarto, um cabide vazio) mas esse presente, logo à segunda fumaça já é passado (a porta desfez-se, o cabide voou) e tanto mais passado quanto mais mergulhamos no cigarro. O olhar envelheceu, foi o que foi.
(...)


José Cardoso Pires in Entrevista de Artur Portela, Publicações D. Quixote -  1991

Tuesday, July 15, 2014

O poder das mãos

O poder ainda puro das tuas mãos
é mesmo agora o que mais me comove
descobrem devagar um destino que passa
e não passa por aqui


à mesa do café trocamos palavras
que trazem harmonias
tantas vezes negadas:
aquilo que nem ao vento sequer
segredamos



mas se hoje me puderes ouvir
recomeça, medita numa viagem longa
ou num amor
talvez o mais belo


José Tolentino Mendonça in Baldios - Assírio & Alvim, 1999

Monday, July 14, 2014

Chega

Não digas nada, dá-me só a mão. Palavra de honra que não é preciso dizer nada, a mão chega. Parece-te estranho que a mão chegue, não é, mas chega. Se calhar sou uma pessoa carente. Se calhar nem sequer sou carente, sou só parvo.


 António Lobo Antunes

Sunday, July 13, 2014

A experiência da meditação









A jornada mais importante que se pode fazer é a jornada interna. É o lugar, além da consciência de cada dia, onde o fortalecimento espiritual começa e nos dá a capacidade para escolhermos pensamentos criativos. A meditação permite-nos embarcar nessa jornada interior quando começamos a apreciar momentos de silêncio e a desfrutar de períodos de introspecção e reflexão. Ensinada como um método para alcançar a consciência de nós próprios, leva-nos à nossa auto-realização. A meditação acalma a mente e fortalece o intelecto para atingir percepção e compreensão das leis e princípios espirituais que sustentam a harmonia. A meditação Raja Yoga em particular redefine o “eu” como uma alma e permite a conexão e o relacionamento diretos com a Fonte Suprema da energia mais pura e da consciência mais elevada.

Como uma técnica, a meditação requer prática para alcançar resultados satisfatórios. Cada vez mais as pessoas estão a incluir algum tipo de meditação na sua rotina diária, quer seja como antídoto para o stress, ou como um simples método de relaxamento.  Experimente a Meditação.

Brahma Kumaris

Saturday, July 12, 2014

Personagem dramática


Friday, July 11, 2014

Um toque de requinte

Pratos, talheres e copos de água e vinho perfilam-se à direita dos pratos. No lado superior esquerdo alinham-se os pratinhos do pão, sem enganos, porque tudo se encontra onde se esperaria que estivesse. Os tons neutros da toalha e guardanapos combinam entre si, não por acaso, mas com grande esmero. A disposição dos lugares completa uma tarefa intensamente expressiva. Uma hora e meia depois, a família encontra-se de novo reunida. Retenho a imagem que vai ganhando forma. Sem surpresa, o epicentro de todo este trabalho está implícito na preservação da memória de um tempo, antes de o perdemos de vista para sempre.

Thursday, July 10, 2014

Os versos

Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que a minha boca tem pra te dizer!
São talhados em mármore de Paros
Cinzelados por mim pra te oferecer.

Têm dolências de veludos caros,
São como sedas brancas a arder...
Deixa dizer-te os lindos versos raros
Que foram feitos pra te endoidecer!

Mas, meu Amor, eu não tos digo ainda...
Que a boca da mulher é sempre linda
Se dentro guarda um verso que não diz!

Amo-te tanto! E nunca te beijei...
E, nesse beijo, Amor, que eu te não dei
Guardo os versos mais lindos que te fiz!



Florbela Espanca  in Livro de Sóror Saudade

Wednesday, July 9, 2014

A paixão voraz

Esta mão que escreve a ardente melancolia da idade
é a mesma que se move entre as nascentes da cabeça,
que à imagem do mundo aberta de têmpora a têmpora
ateia a sumptuosidade do coração. A demência lavra
a sua queimadura desde os recessos negros
onde se formam as estações até ao cimo,
nas sedas que se escoam com a largura fluvial
da luz e a espuma, ou da noite e as nebulosas
e o silêncio todo branco.
Os dedos.
A montanha desloca-se sobre o coração que se
alumia: a língua alumia-se.

O mel escurece dentro da veia jugular talhando
a garganta. Nesta mão que escreve afunda-se
a lua, e de alto a baixo, em tuas grutas
obscuras, a lua tece as ramas de um sangue mais salgado
e profundo. E o marfim amadurece na terra
como uma constelação. O dia leva-o, a noite
traz para junto da cabeça: essa raiz de osso
vivo. A idade que escrevo escreve-se
num braço fincado em ti, uma veia dentro
da tua árvore. Ou um filão ardido de ponta a ponta
da figura cavada no espelho. Ou ainda a fenda
na fronte por onde começa a estrela animal.
Queima-te a espaçosa
desarrumação das imagens. E trabalha em ti
o suspiro do sangue curvo, um alimento violento cheio
da luz entrançada na terra. As mãos carregam a força
desde a raiz dos braços, a força
manobra os dedos ao escrever da idade, uma labareda
fechada, a límpida
ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas na desordem,
nenhum astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.
As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco
luminoso, arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como
um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que
crescem nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas


Herberto Helder

Tuesday, July 8, 2014

Em declínio

Ao espreitar os dias que aí vinham a sua intuição levava-a a pensar na necessidade de uma nova dinâmica. Um país que crescera meio por cento em 10 anos nunca poderia ter perspectivas de futuro. Que fazer então da vida? Ao colocar tudo em causa importava, porém, reduzir a probabilidade de insustentabilidade e antever alguma esperança. 

Sunday, July 6, 2014

Debruça-te

Debruça-te para o interior do meu vazio. Nenhum rosto, nenhum pensamento, nenhum gesto inútil. Nenhum desejo - porque o desejo precisa de um rosto. E no lugar daquele que partiu acende-se a noite.

Al Berto

Saturday, July 5, 2014

Coletivo humano

Friday, July 4, 2014

Uma porta para o verão

nada entre nós tem o nome da pressa.
conhecemo-nos assim, devagar, o cuidado
traçou os seus próprios labirintos. sobre a pele
é sempre a primeira vez que os gestos acontecem. porém,
se se abrir uma porta para o verão, vemos as mesmas coisas –
o que fica para além da planície e da falésia; a ilha,
um rebanho, um barco à espera de partir, uma palavra
que nunca escreveremos. entre nós
o tempo desenha-se assim, devagar.
daríamos sempre pelo mais pequeno engano.
Maria do Rosário Pedreira

Thursday, July 3, 2014

A noite

Atravessa os campos da noite
e vem.
 A minha pele
ainda cálida de sol
te será margem.

Nas fontes, vivas,
do meu corpo
saciarás a tua sede.

Os ramos dos meus braços
serão sombra rumorejante
ao teu sono, exausto.

Atravessa os campos da noite
e vem.

 Luísa Dacosta in A Maresia e o Sargaço dos Dias, Porto -  Edições Asa, 2002

Wednesday, July 2, 2014

Em frente ao mar

Casa branca em frente ao mar enorme,
Com o teu jardim de areia e flocos marinhas
E o teu silêncio intacto em que dorme
O milagre das coisas que eram minhas.

A ti eu voltarei após o incerto
Calor de tantos gestos recebidos
Passados os tumultos e o deserto
Beijados os fantasmas, percorridos
Os murmúrios da terra indefinida.

Em ti renascerei num mundo meu
E a redenção virá nas tuas linhas
Onde nenhuma coisa se perdeu
Do milagre das coisas que eram minhas.


 Sophia de Mello Breyner Andresen in Poesia I (1944)

Tuesday, July 1, 2014

Apenas palavras

nada pode ser mais complexo que um poema,
 organismo superlativo absoluto vivo,
 apenas com palavras,
 apenas com palavras despropositadas,
 movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
 nada mais que isso,
 música,
 e o silêncio por ela fora


Herberto Helder