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Cada vez que oiço um comboio à noite sinto que a vida não acaba. Passam por trás das casas, no fim do bairro, uma fitinha de janelas iluminadas, rápidas, que estremecem as árvores, estremecem as molduras na parede, me estremecem a mim, e a seguir as árvores, as molduras e eu a recompor-nos, e a seguir nada. Uma espécie de vento, talvez, antes de tudo quieto de novo. Na fitinha de janelas iluminadas nunca há pessoas: os comboios, à noite, não transportam ninguém, dirigem-se não sei para onde, não chegam nunca a parte alguma: viajam interminavelmente, sem destino, indiferentes aos apeadeiros vazios, com uma balança, um relógio e uma máquina automática de cigarros, por vezes cães enrolados entre os bancos desertos, por vezes um pedaço de jornal às cambalhotas nas plataformas onde nenhum passageiro espera: os comboios, à noite, viajam insones num mundo morto, com as insígnias dos pronto-a-vestir apagados e os olhos dos manequins ocos nas vitrinas, os dedos delicados, de pasta, imóveis numa linguagem de surdos-mudos que o escuro não entende: um pedido de socorro, um cumprimento, um aviso? (...)
António Lobo Antunes in “Meu menino, ino, ino” - Visão, 18 de Agosto de 2005