nunca mais quero escrever numa língua
voraz,
porque já sei que não há entendimento,
quero encontrar uma voz paupérrima,
para nada atmosférico de mim mesmo: um
aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça,
tanto a noite caminhando quanto a manhã
que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo -
estou farto de tanto vazio à volta de
nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo
do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence,
este mundo não é o outro mundo que a
outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores
e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que
só eu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz
sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras
línguas,
e estes livros, estas flores, quem me
dera tocá-los numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema,
um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo
forte e silêncio
Herberto Helder in Servidões, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013