A faca não corta o fogo,
não me
corta o sangue escrito,
não
corta a água,
e quem não queria uma língua dentro da própria
língua?
eu sim
queria,
jogando
linho com dedos, conjugando
onde os
verbos não conjugam,
no
mundo há poucos fenómenos do fogo,
água há
pouca,
mas a
língua, fia-se a gente dela por não ser como se queria,
mais
brotada, inerente, incalculável,
e se a
mão fia a estriga e a retoma do nada,
e a
abre e fecha,
é que
sim que eu a amava como bárbara maravilha,
porque
no mundo há pouco fogo a cortar
e a
água cortada é pouca,
¡que
língua,
que
húmida, muda, miúda, relativa, absoluta,
e que
pouca, incrível, muita,
e la
poésie, c'est quand le quotidien devient extraordinaire, e que música,
que
despropósito, que língua língua,
disse
Maurice Lefèvre, e como rebenta com a boca!
queria-a toda
Herberto Helder in Ofício Cantante (1930)