Não fora o mar, e eu seria feliz na minha rua, neste primeiro andar da minha casa a ver, de dia, o sol, de noite a lua, calada, quieta, sem um golpe de asa.
Não fora o mar, e seriam contados os meus passos, tantos para viver, para morrer, tantos os movimentos dos meus braços, pequena angústia, pequeno prazer.
Não fora o mar, e os seus sonhos seriam sem violência como irisadas bolas de sabão, efémero cristal, branca aparência, e o resto — pingos de água em minha mão.
Não fora o mar, e este cruel desejo de aventura seria vaga música ao sol pôr nem sequer brasa viva, queimadura, pouco mais que o perfume duma flor.
Não fora o mar e o longo apelo, o canto da sereia, apenas ilusão, miragem, breve canção, passo breve na areia, desejo balbuciante de viagem.
Não fora o mar e, resignada, em vez de olhar os astros tudo o que é alto, inacessível, fundo, cimos, castelos, torres, nuvens, mastros, iria de olhos baixos pelo mundo.
Não fora o mar e o meu canto seria flor e mel, asa de borboleta, rouxinol, e não rude halali, garra cruel, Águia Real que desafia o sol.
Não fora o mar e este potro selvagem, sem arção, crinas ao vento, com arreio, meu altivo, indomável coração,
Não fora o mar e comeria à mão, não fora o mar e aceitaria o freio.
Fernanda de Castro in «Trinta e Nove Poemas», 1941