Saturday, August 31, 2013

Tristes geografias


 Dei-te o meu corpo como quem estende
 um mapa antes de viagem, para que nele
 descobrisses ilhas e paraísos e aí pousasses
 os dedos devagar, como fazem as aves
 quando encontram o verão. Se me tivesses

 tocado, ter-me-ia desmanchado nos teus braços
 como uma escarpa pronta a desabar, ou
 uma cidade do litoral a definhar nas ondas.

 Mas, afinal, foste tu que desenhaste mapas
 nas minhas mãos - tristes geografias,
 labirintos de razões improváveis, tão curtas
 linhas que a minha vida não teve tempo
 senão para pressentir-se. Por isso, guardo

 dos teus gestos apenas conjecturas, sombras,
 muros e regressos - nem sequer feridas
 ou ruínas. E, ainda assim, sem eu saber  porquê,
 as ondas ameaçam o lago dos meus olhos.

 Maria do Rosário Pedreira

Friday, August 30, 2013

A luz do Verão

O Verão era tudo isso. Uma praia que resplandecia de alegria sob o esplendor do sol, o céu azul, tanta superfície cristalina e o registo de corpos à beira-mar. O seu olhar perdia-se a um ritmo, supostamente, lento. Vivemos inundados de tudo que transborda, pensou, o que, por si só, justificava que voltasse a preparar-se para mergulhar de novo. 

Thursday, August 29, 2013

O que vem depois

Chegou a pensar desistir, mas o sol quente do meio-dia convidou-a a sair do impasse. Antes do almoço, solta as amarras e mergulha sem complexos, à espera de descobrir até onde podia ir, na busca de espectros e vestígios que, no oceano, continuam a sobrar. Réstias de sonhos surgem, a todo o instante, num jogo próximo do fim. 

Wednesday, August 28, 2013

Primeiro acto


Tuesday, August 27, 2013

Emoções fortes

fôsses tu um grande espaço e eu tacteasse
com todo o meu corpo sôfrego e cego

herberto helder in servidões, assírio & alvim 2013


Monday, August 26, 2013

Linha de fuga

- Segue em frente. Disseram-lhe as flores em coro.
Alice obedeceu. Andou, andou, e encontrou em cima de um cogumelo um bichinho verde que lhe perguntou:
- Que desejas?
Percebendo a tristeza de Alice, o bichinho verde disse:
- Come do cogumelo, mas só do lado direito, senão diminuis de tamanho.

Minutos depois de comer, Alice voltou à sua estatura normal. Radiante da vida, acabou por levar consigo mais dois pedacinhos.

Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas

Sunday, August 25, 2013

Sobre a água

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.



Pablo Neruda 

Saturday, August 24, 2013

O lado estético


Thursday, August 22, 2013

Crise de representatividade

- «Ninguém sabe muito bem onde isto vai dar», confidenciava-lhe ela ao ouvido, «sem medidas concretas que ponham cobro a tamanho desencanto. Num gesto desesperado, vendem-nos sonhos, que, de resto, nunca acabam por cumprir».
- «Não se pode voltar ao que já se foi», murmurava-lhe ele. «Afinal, o que está em causa é a coragem para enfrentarmos tantas mudanças. Contudo, por outro lado, a transparência é absolutamente ilusória».
- «E, não seria legítimo esperar mais?» Insistia ela. 
- «Claro, não vês que eles só contam a parte da verdade que lhes interessa»?

Wednesday, August 21, 2013

Jantar de Verão




Na noite do seu aniversário, a Manuela contou com a presença das amigas mais próximas, não escondendo a sua felicidade. Ausente no estrangeiro, durante longos anos, vive agora uma nova fase da sua vida em ambiente descontraído e de grande charme.

Tuesday, August 20, 2013

O silêncio rumorejante

 Durante o sono retiraram-me uma costela
 Ficou-me no peito um vazio que não consigo preencher
 Custa-me a respirar
 Eu quero de volta a minha costela
 quero de volta todas as costelas
 Quero de volta o paraíso
 quero de volta o silêncio rumorejante
 quero de volta as poluções nocturnas
 e diurnas
 Quero uma mulher
 feita de chuva
 e vento
 e fogo
 e neve
 e luz
 e breu
 e não de argila
 como eu


Jorge Sousa Braga in O Novíssimo Testamento e outros poemas

Monday, August 19, 2013

Planos fixos




Em rigor, os passeios diários com o Rico, não são mais senão um somatório de pequenas descobertas. Portugal é um dos maiores produtores de alfarroba – vagem comestível com cerca de 10 a 16 sementes que leva um ano inteiro a amadurecer, e que aqui é conhecida como o chocolate do Algarve, pelo seu sabor levemente adocicado que, quando moída e torrada, substituí o cacau. Cada percurso desencadeia uma procura, e assim vamos conhecendo de que é feita toda a substância.

Sunday, August 18, 2013

Além do amor

 Mais que o teu corpo quero o teu pudor
 quero o destino e a alma e quero a estrela
 e quero o teu prazer e a tua dor
 o crepúsculo e a aurora e a caravela
 para o amor que fica além do amor.

 A alegria e o desastre e o não sei quê
 de que fala Camões e é como água
 que dos dedos se escapa e só se vê
 quando o prazer se torna quase mágoa.

 Estar em ti como quem de si se parte
 e assim se entrega e dando não se dá
 quero perder-me em ti e quero achar-te
 como num corpo o corpo que não há.

 Manuel Alegre in Livro do Português Errante - Dom Quixote, 2001

Saturday, August 17, 2013

Um olhar de relance

Em última análise, quem por ela vagueia pressente-lhe os mistérios atrás da porta. Intensamente habitada por mendigos ou fantasmas, de certo modo, reconhecesse-lhe um legado digno de reconhecimento. Do tecto apenas resta o horizonte, e se houvesse uma história, certamente, muito haveria para contar.

Friday, August 16, 2013

Construção rítmica


Thursday, August 15, 2013

Nasci para cantar o fado




Meu amor, porque me prendes?
Meu amor, tu não entendes,
Eu nasci para ser gaivota.


Meu amor, não desesperes,
Meu amor, quando me queres
Fico sem rumo e sem rota. 

Paulo Valentim (excerto do fado Segredos)

Wednesday, August 14, 2013

O inalcançável

O inalcançável é sempre azul.

Clarice Lispector

Tuesday, August 13, 2013

Lamechices

Foi-as coleccionando, ao longo dos dias. Soltas, aqui e ali, deram para encher um pequeno balde. Num dado momento, dispôs as conchinhas, uma a uma, em forma de um coração, onde cabia todos os sonhos. Ao olhar de quem passava o gesto não seria inédito, contudo, irreflectidamente apaixonada, ela sentia que tinha ganho uma alma nova conseguindo expressar um desejo explícito. 

Monday, August 12, 2013

À beira do mar

Como quem procura conchas à beira do mar,
escolho as palavras para te dizer,
quando o silêncio dos teus braços
vestir o frio dos meus ombros.

Luísa Dacosta


Sunday, August 11, 2013

Mar de Agosto


 Deixa ficar comigo a madrugada,
 para que a luz do Sol me não constranja.
 Numa taça de sombra estilhaçada,
 deita sumo de lua e de laranja.

 Arranja uma pianola, um disco, um posto,
 onde eu ouça o estertor de uma gaivota...
 Crepite, em derredor, o mar de Agosto...
 E o outro cheiro, o teu, à minha volta!

 Depois, podes partir. Só te aconselho
 que acendas, para tudo ser perfeito,
 à cabeceira a luz do teu joelho,
 entre os lençóis o lume do teu peito...

 Podes partir. De nada mais preciso
 para a minha ilusão do Paraíso.


 David Mourão-Ferreira  in Infinito Pessoal ou a Arte de Amar, Guimarães Editores 1963

Saturday, August 10, 2013

O brilho da ribalta


Friday, August 9, 2013

Quantificação

Quando para eles olhamos, desprendem-se das árvores deixando antever o sabor que a cor lhes acentua. Toda a beleza é o começo dum fruto. Pêssegos, ameixas, cerejas, melões e mais uma infinidade, circulam como uma tresloucada roda da fortuna, unicamente, para o nosso proveito. E, quão generoso é o Verão! Melhor dizendo, pelos pomares, até à boca, os gestos não escondem o prazer, sem pressas, da sua degustação.

Thursday, August 8, 2013

Última gota


 Mas há a vida
 que é para ser
 intensamente vivida, há o amor.
 Que tem que ser vivido
 até a última gota.
 Sem nenhum medo.
 Não mata.


Clarice Lispector

Wednesday, August 7, 2013

Rosa esquerda

rosa esquerda, plantei eu num antigo poema virgem,
e logo ma roubaram,
logo me perderam o pequeno achado,
mas ninguém me rouba a alma,
roubam-me um erro apenas que acertava só comigo,
um umbigo, um nó,
um nome que só em mim era floral e único


herberto helder in servidões, 2013

Tuesday, August 6, 2013

A flor de acaso


 Flor de acaso ou ave deslumbrante,
 Palavra tremendo nas redes da poesia,
 O teu nome, como o destino, chega,
 O teu nome, meu amor, o teu nome nascendo
 De todas as cores do dia!


 Alexandre O'Neill in No Reino da Dinamarca, Obra Poética (1951-1965), 2.ª edição

Monday, August 5, 2013

Representação histórica








Entre o passado e o presente, percorri todo um espaço de memória e fascínio na grandiosidade do centro histórico de Silves, à medida que, fui descobrindo artesãos, figurantes e objectos numa extraordinária retrospectiva do tempo que evocou manjares, festa e muita música numa versão carregada de esplendor. 

Sunday, August 4, 2013

A solução

Dorothy seguiu um caminho de pedras amarelas e viu um espantalho num campo de milho e libertou-o.
– Não sei como lhe agradecer- disse o espantalho.
- Faz-me falta um cérebro.
– Vem comigo! O Mágico de Oz poderá dar-te um - falou a menina.
Mais adiante, encontrou um homem de lata enferrujado. Depois que Dorothy o untou de óleo, o homem lata agradeceu e disse que gostaria de um coração para ser generoso.
– Vem connosco. O Mágico de Oz vai conseguir arranjar-te um -  disse Dorothy.
No caminho, um leão atacou o Totó.
– Mas que leão cobarde! — gritou Dorothy, zangada. O leão recuou e concordou. 

– Então, vem connosco. O Mágico de Oz vai dar-te coragem - disse Dorothy com pena do leão.

 L. Frank Baum in O feiticeiro de Oz 

Saturday, August 3, 2013

Infinita melancolia


Friday, August 2, 2013

Projectos

Para a esmagadora maioria a probabilidade de gozar férias será, este ano, remota. Contudo, neste mês, considerado de excelência, as férias assumem um papel absolutamente imperativo e a única forma de fugir de tudo aquilo que nos leva a partir em primeiro lugar. Em colapso com uma programação habitual, inquietações e incertezas dão lugar a um mundo novo de locais e situações diversificadas que, recriamos para além do quotidiano. O ritmo, simplesmente, abranda e a rotina deixa de ser. Neste ponto, poderíamos dizer que nada há melhor que, desimpedido o caminho nos deixemos embarcar numa viagem de sonho. Infelizmente, para alguns, fica demasiado distante e é por isso inalcançável.

Thursday, August 1, 2013

Agosto

Quem em Agosto ara, riquezas prepara.

provérbio