Thursday, October 22, 2015

A cabeça

A teoria era esta: arrasar tudo — mas alguém pegou
na máquina de filmar e pôs em gravitação uma cabeça recolhendo-a
de um lado e descrevendo-a de outro lado num sulco
vibrante «parecia um meteoro»
como se fosse muito simples e então a cabeça desaparecia «a lua»
a ferver a grande velocidade pelo céu dentro
«um buraco»
via-se apenas a intensidade «estávamos com medo pois aquilo
assemelhava-se a uma revelação» e foi quando ele apanhou a cabeça
outra vez
e era agora uma cabeça furiosa
«cheia de peso» dizia-se «a luz agarra qualquer coisa»
oh sim: «com toda a violência»
pensai num bocado de carne despedaçado entre as mandíbulas
de um tigre: e depois deixou cair esse rosto sustentado atrás
pela bela caixa craniana com aquele rastro de cometa
«que é isto?» perguntou-se — e pusemo-nos todos a pensar bastante
«havia ali um senso arcaico da paixão»
talvez uma coisa tão remota e bárbara como: o fausto:
o pavor:
a caça: «é um movimento uma forma» disse ele
«é preciso voltar ao princípio»
e então começámos a usar os olhos com a ferocidade das objectivas
sem truques capturando tudo selvaticamente
e havia por vezes a vertente das espáduas desalojadas
um caudal sumptuoso
cortado «era tão estranho!» pela ligeireza dos dedos abertos
delicado pentagrama a duas alturas
«uma estrela refractada» para falar do que se viu
na projecção do filme e então podia-se adiar tudo menos aquela ideia
de que «não digo beleza» de que uma força
impelia tudo e a rapidez criava formas
linhas de translação feixes
de desenvolvimento ao longo das paisagens redondas como
abismos
recorria-se ainda a imagens para devolver essa cabeça
ao fulgor da sua precipitação contra os olhos
a queda «como oxigénio a arder» e a fuga
e a correria em que voltava para subir e rodar
de um modo que dizíamos: «indomavelmente»
porque vistas assim as coisas eram de uma fatalidade total
e a irrevogável maneira que tinham de ser livres
soltas
impunes
— na sua firmeza: «inocentes» — isso fazia medo
e havia em nós «um estilo de ver» que nos arrastava
implacavelmente para a loucura e a alegria
«porque era preciso destruir tudo» sim «de extremo a extremo»
para encontrar «o centro» onde o calcanhar gira
e roda o corpo todo
o sítio talvez onde se formam as massas dos espelhos
de que saltam fortemente «os astros os rostos»
e não haver «exemplo» mas apenas uma forma rudimentar
desfechada
contra tudo aqui escavando achado o veio
a limpidez primeiramente: aquilo: a cabeça móvel apanhada


Herberto Helder in A Faca não Corta o Fogo