Eu teria amado esse
destino imóvel, esse frio
poço de canções.
Contudo, ela não dormia, estava partida
a meu lado, era uma
gruta onde a música
um instante se torna
infinita.
Durante um mês viveu em
mim, e não dormia. Foi o mês
das musas, a penumbra
da sua vida
estava coberta de ervas
puras.
Ela não dormia (como
dizer que era assim?). Durante
o espantoso mês das
musas, eu despertava como um espelho
onde as brasas da
cabeça principiaram a girar.
Estava iluminada por
dentro, e a noite ia e vinha
sobre os arcos e os
tanques da sua testa.
Eu cantava junto a esse
sonâmbulo instrumento,
eu era infeliz e
fecundo, o sangue
passava pelos arbustos
do corpo e os pensamentos
ardiam, em mim, nessa
monstruosa
noite da criação.
Sinto que tocaria esse
intenso violino, e a vida
mudaria, as grandes
estações do ano passariam devagar
na minha confusão. Eu
era um homem
e tinha na boca o
profundo ofício de sorrir
o fluxo encantado e
irónico
das mensagens. E tinha
as palavras de piedade que um homem
tem para acender, como
fogueiras,
nas margens cantantes e
frias das águas
do mundo.
Vejo a minha vida
agitada, as pequenas faúlhas
do rosto, a minha
piedade e desgraça
de homem,
debruçados sobre esse
objecto misterioso e triste,
e poderoso e vazio
como uma guitarra, como
uma coluna de obscuridade
que dormia, que não
podia jamais dormir
entre uma onda que vem
do céu e da terra, e uma noite
que iria e viria sobre
a paisagem
de arcos e pontes e
torres e poços tenebrosos
e ocos.
Às vezes eu levantava
um braço que deixava arder
ou pensava como era
forte
a torrente do meu
silêncio. Pensava
como poderia
desfazer-se a carne sem que eu
gritasse. A minha voz
era esplêndida,
os mortos poderiam
erguer um pouco os seus ombros
submersos na grande ideia
universal, poderiam
ouvir alguma coisa da minha voz
tão límpida de
desgraça, de terrível
alegria.
A meu lado, aquele ser
levitava e por ele
as aves passavam, os
montes atingiam
as corolas celestes,
nunca deixavam de correr
as águas que atravessam
os povos mais puros do mundo.
Era tenebroso e doce
que a loucura me viesse
deste lugar, que fosse
uma árvore a sustentar
a minha juventude.
Chegava um dia em que
ela devia ser impura,
e o meu coração
ressoava. Minha piedade de homem
de novo se inclinava
sobre as formas mudas.
Porque a terra
trabalhava talvez para acender
aquela tenebrosa
cidade, porque ela mesma cantaria então,
humilde e iluminada,
debaixo da noite
rolante, da estupenda noite
inspiradora. Mas somente
para mim
o vento circulava com
seus archotes
rápidos, rápidos;
só a minha cabeça
estremecia contra a almofada
de fogo, e o sangue
despedaçava as portas,
e ao alto os telhados
transparentes incendiavam-se
batidos pelos raios.
Sabia-se agora
como havia razão no
oculto
movimento da fantasia,
como essa força
chegava de nada e era
força no próprio e puro enigma
da minha vida. Porque a
obra era então ―
mais do que o mundo e
as fontes e os leitos
dos poderes ―
eu, o homem mesmo,
disposto sobre si
como a luz se dispõe
sobre a luz,
como as palavras são em
si mesmas dispostas
no renovo das palavras.
Sobre a sombra de um
mês confuso e rápido,
eu era um homem ―
e um homem beija a sua
própria boca.