Monday, March 9, 2015

O mês das musas

Eu teria amado esse destino imóvel, esse frio
poço de canções. Contudo, ela não dormia, estava partida
a meu lado, era uma gruta onde a música
um instante se torna infinita.
Durante um mês viveu em mim, e não dormia. Foi o mês
das musas, a penumbra da sua vida
estava coberta de ervas puras.
Ela não dormia (como dizer que era assim?). Durante
o espantoso mês das musas, eu despertava como um espelho
onde as brasas da cabeça principiaram a girar.

Estava iluminada por dentro, e a noite ia e vinha
sobre os arcos e os tanques da sua testa.
Eu cantava junto a esse sonâmbulo instrumento,
eu era infeliz e fecundo, o sangue
passava pelos arbustos do corpo e os pensamentos
ardiam, em mim, nessa monstruosa
noite da criação.

Sinto que tocaria esse intenso violino, e a vida
mudaria, as grandes estações do ano passariam devagar
na minha confusão. Eu era um homem
e tinha na boca o profundo ofício de sorrir
o fluxo encantado e irónico
das mensagens. E tinha as palavras de piedade que um homem
tem para acender, como fogueiras,
nas margens cantantes e frias das águas
do mundo.

Vejo a minha vida agitada, as pequenas faúlhas
do rosto, a minha piedade e desgraça
de homem,
debruçados sobre esse objecto misterioso e triste,
e poderoso e vazio
como uma guitarra, como uma coluna de obscuridade
que dormia, que não podia jamais dormir
entre uma onda que vem do céu e da terra, e uma noite
que iria e viria sobre a paisagem
de arcos e pontes e torres e poços tenebrosos
e ocos.

Às vezes eu levantava um braço que deixava arder
ou pensava como era forte
a torrente do meu silêncio. Pensava
como poderia desfazer-se a carne sem que eu
gritasse. A minha voz era esplêndida,
os mortos poderiam erguer um pouco os seus ombros
submersos na grande ideia
universal, poderiam ouvir alguma coisa da minha voz
tão límpida de desgraça, de terrível
alegria.

A meu lado, aquele ser levitava e por ele
as aves passavam, os montes atingiam
as corolas celestes, nunca deixavam de correr
as águas que atravessam os povos mais puros do mundo.

Era tenebroso e doce que a loucura me viesse
deste lugar, que fosse uma árvore a sustentar
a minha juventude.

Chegava um dia em que ela devia ser impura,
e o meu coração ressoava. Minha piedade de homem
de novo se inclinava sobre as formas mudas.
Porque a terra trabalhava talvez para acender
aquela tenebrosa cidade, porque ela mesma cantaria então,
humilde e iluminada,
debaixo da noite rolante, da estupenda noite
inspiradora. Mas somente para mim
o vento circulava com seus archotes
rápidos, rápidos;
só a minha cabeça estremecia contra a almofada
de fogo, e o sangue despedaçava as portas,
e ao alto os telhados transparentes incendiavam-se
batidos pelos raios.

Sabia-se agora
como havia razão no oculto
movimento da fantasia, como essa força
chegava de nada e era força no próprio e puro enigma
da minha vida. Porque a obra era então ―
mais do que o mundo e as fontes e os leitos
dos poderes ―
eu, o homem mesmo, disposto sobre si
como a luz se dispõe sobre a luz,
como as palavras são em si mesmas dispostas
no renovo das palavras.

Sobre a sombra de um mês confuso e rápido,
eu era um homem ―
e um homem beija a sua própria boca.


 Herberto Helder in A colher na boca - 1961