Wednesday, December 31, 2014

Mais tarde

hei-de
começar mais tarde
por ora
sou a pegada
do passo por acontecer


Mia Couto

Tuesday, December 30, 2014

A tomar forma

Em contagem decrescente para o novo ano, antecipa-se umas horas palpitantes a anteceder uma noite de brilho - ponto de partida ao que aí vem. Sons amplos e explosões rítmicas distintas manifestar-se-ão pela noite fora, permitindo-nos esquecer quaisquer derivações caóticas. Cada um, à sua maneira, transitará entre o impacto imediato e um futuro incerto que, mais tarde, inevitavelmente havemos de recriar.

Monday, December 29, 2014

No compasso dos sonhos

Guarda tu agora o que eu, subitamente, perdi
talvez para sempre - a casa e o cheiro dos livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono. Guarda-o

serenamente e sem pressa, como eu nunca soube.
E protege-o de todos os invernos - dos caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde se esconde
os mais escondidos medos e anseios.

Não deixes nunca que se ouça sozinho no que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,
na escuridão do quarto, seja ele a abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez que o queria.

Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à luz azul
que os dias trazem à casa quando são tranquilos.
E nada lhe peças de manhã - as manhãs pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol. E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu, subitamente,
por assim não ter feito.


  Maria do Rosário Pedreira in a casa e o cheiro os livros - gótica 2002



Sunday, December 28, 2014

Saturday, December 27, 2014

O desenlace

Naquele sábado, o último de Dezembro, não poderia adivinhar o que aí vinha. Mas, a julgar pelo ano a terminar, a única coisa com que ainda poderia sonhar seria ousar fazer frente ao invasor para que as coisas pudessem melhorar significativamente. Prematuramente envelhecida comungava a tragédia de tantos outros que lutavam para sobreviver. Só um trabalho de perícia intenso lhes poderia reconstruir a esperança como se nada mais existisse. 

Friday, December 26, 2014

A representação

Poucos dias depois, regressados a casa, uma vez terminado o estado de esplendor e já distantes da realidade espiritual, escrupulosamente, uma a uma, retiramos uma verdadeira parafernália de coisas nenhumas, desarticuladas, que improvisámos mais a pensar no lado estético que outra coisa qualquer, mais os seus restos e tantas pontas soltas que, finalmente, nos criam espaço para as verdadeiras reflexões. 

Thursday, December 25, 2014

No dia seguinte

Escusado será dizê-lo, que lá no fundo, se jamais nos questionarmos sobre a importância da retrospectiva nunca alcançaremos utopias maiores. Finda a época natalícia e prestes a abraçar 2015 a falta de esperança é a confirmação de uma série de suspeitas que, implicitamente, nos ameaça o futuro.

Wednesday, December 24, 2014

Rasgo de luzes

Este é o tempo de tradições sistematizadas, habitado por luzes intermitentes, de efeito efémero, em que é fácil sucumbir-se ao consumismo em contraste com a proximidade de belos exteriores que, irradiam a claridade das profundezas. 

Tuesday, December 23, 2014

O reencontro


Friday, December 19, 2014

As aves morrem

E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das núvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

[...]


Herberto Helder in O Amor em Visita - Lisboa: Contraponto, 1958

Thursday, December 18, 2014

Para lá da imensidão

As cotovias mandaram chamar a Palavra
e disseram-lhe: Gostaríamos de voar contigo!
Por quê?, disse a Palavra, se podeis livremente voar
no azul do céu, sobre o mar, e também sobre bosques e searas,
poisar até no cume frio das altíssimas montanhas.
Pois sim, concordou uma delas, mas como faremos
para voar, como tu, até ao coração do homem?
E, a todas, a palavra respondeu: Não, amigas, não sou eu
que voo até ele! É o seu coração que sempre me procura
para oferecer-me a capacidade e a alegria de voar
para lá do azul do céu e para lá da imensidão do mar,
muito para além dos bosques, das searas,
e mais alto, ainda mais alto que o cume frio
das montanhas. Sem nunca chegar ao fim
de nada, mas ao início
de tudo.


Joaquim Pessoa

Tuesday, December 16, 2014

Estou assustada

Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses. As ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
as praças açoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.

A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu

Estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo, que não voltes.


Maria do Rosário Pedreira

Monday, December 15, 2014

Registos

Quando era pequeno, rodava sobre mim próprio com as pontas dos pés. Rodar-rodar-rodar: as formas a saírem dos contornos, as cores a misturarem-se demasiado rápidas e, depois, ao parar de repente, o chão como um barco debaixo da tempestade, a paisagem inteira a oscilar desgovernada, eu a tentar equilibrar-me e, ao mesmo tempo, criança, a apreciar esse caos. A seguir, a pouco e pouco, o horizonte abrandava e voltava a fixar-se.

Eu tenho um lugar. Por isso, nunca me perco no mundo imenso.

José Luís Peixoto in O meu lugar - Visão, Agosto 2013

Sunday, December 14, 2014

Gesto estético


Saturday, December 13, 2014

Na quietude do lago

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Mia Couto in Raiz de Orvalho e Outros Poemas

Friday, December 12, 2014

Corpo de baile






Com música de Tchaikovsky, "O Lago dos Cisnes" inspirado numa antiga lenda alemã é um dos mais populares ballets do repertório clássico. Conta-nos a história de um príncipe que se apaixona por uma princesa transformada em cisne resgatando a forma humana apenas entre a meia-noite e a aurora, pela acção perversa de um feiticeiro. Neste espectáculo, o mundo real cruza-se com um mundo mágico repleto de sentimentos traduzidos em movimentos de grande flexibilidade e beleza. 

Thursday, December 11, 2014

Adiante veríamos

Prestes a abraçar o Inverno que havia de vir, o presente ilustrava-lhe uma sobreabundância de cores quentes em todo o seu esplendor. A névoa que pairava não ofuscava as mil tonalidades da estação. Os castanho-amarelado, os vermelhos, alaranjados e dourados iam chegando, e a diferencialidade de cada um assegurava-lhe informação adicional que a imagem imortalizava. 

Wednesday, December 10, 2014

A janela baça

As palavras escritas numa vidraça embaciada pela chuva são sempre tristes. Não importa o seu verdadeiro significado.


Maria Gabriela Llansol  excerto de Intróito de Os Pregos na Erva, 1962 (2ª ed.): edições Rolim, - 1987

Tuesday, December 9, 2014

A incerteza

Alice continuava a crescer e crescer, e logo precisou de se ajoelhar no chão. No minuto seguinte chega a tentar deitar-se com um cotovelo contra a porta e o outro braço sobre a cabeça! Mas continuava a crescer e, como último recurso, acaba por colocar um braço fora da janela e um pé dentro da chaminé, dizendo para si mesma: - “Agora eu não posso fazer mais nada, o que quer que aconteça. Afinal, o que vai ser de mim?”

Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas

Sunday, December 7, 2014

Saturday, December 6, 2014

De um só golpe

Sobre a poeira que te cobre o peito deixo o meu cartão de visita o meu
    nome profissão morada telefone.
     Disse-te: Eis-me.
     E decepei-te a cabeça de um só golpe.
     Não queria matar-te. Choro. Eis-me! Eis-me!

Luiza Neto Jorge in Difícil Poema de Amor – Poesia - Assírio & Alvim - 2ª edição – 2001

Friday, December 5, 2014

A sede

Regressas às vezes, quando é noite, ao lugar
onde sempre te demoras.
Levas ao ombro uma ânfora a que sorveste os
sumos dia-a-dia nela derramados: água e vinho,
o leite das amoras e dos figos, o licor almiscarado
das cerejas e das ginjas. E a sede, essa substância
de todas a mais viva.
Queres agora encher novamente o vaso.
A água e o vinho secaram na haste e na fonte,
a ânfora está quebrada e os dedos já não seguram
sequer os cacos que apenas sobrevivem.


Albano Martins


Thursday, December 4, 2014

O bafo no rosto

Quero um erro de gramática que refaça
 na metade luminosa o poema do mundo,
 e que Deus mantenha oculto na metade nocturna
 o erro do erro:
 alta voltagem do ouro,
bafo no rosto.



Herberto Helder in Poesia Toda, Lisboa - Assírio & Alvim, 1996

Wednesday, December 3, 2014

Em estado puro

Pouco importava o rumo. Diametralmente relevante era esse lugar de encontro onde se sentia cúmplice da unidade de conjunto. De caminho, num contínuo girar em busca de harmonia, não menos evidente era o desejo de recuperar o preciso ângulo, onde o Outono se reacendia e a inspirava. 

Tuesday, December 2, 2014

Paixão romantizada


Monday, December 1, 2014

Fio de história

A julgar por tantos momentos circunstanciais, aos olhos dela ele era um anjo. Num tempo mais lento, quando a indiferença e o distanciamento fechavam um círculo de amizades voláteis, só o papel que ele suportava era sustentável. Seria legítima a desilusão? Mais do que um personagem, perante as vicissitudes desencadeadas no conflito dos dias, apenas o anjo fulgia!