fico indiferente a vê-los gostar de poemas
meus da juventude,
poemas tão inconscientes de si quando se
coloca a mão
numa fruta, num livro encadernado,
e estranho, que passem rápido sobre a
ferida ainda aberta,
ou não sintam a rispidez com que se fecha
o dia
ao voltar a página
sob a noite afogando casas, pessoas, todos
os livros do mundo,
e já declina a beleza completamente
despida
da jovem ateniense que abriu a porta e
traz a luz ao quarto inteiro
de
uma só vez,
mas deixa que se suspeite a treva infinda
de onde chega,
ávida fêmea de que equívoca temperatura,
de perguntas como: que idade tem a terra?
em que data de que sítio é a primavera?
ou: este arrepio nas unhas anuncia que
morre de que coisas?
(alguém algures assobia uma canção em
voga)
¿e que terror é este saber que há tanta
vida
neste dia em que decerto, entre ruído e
silêncio cada vez mais fundo,
alguém sente que a ferida lateja,
e há numa página do livro
– aguda, obscura, ofuscante –
uma dedada de sangue?
Herberto Helder