Monday, June 30, 2008

Janela

Janela rente ao mar e rente ao tempo
- Ó mãos poisadas sobre um Junho antigo -
De ano em ano de hora em hora
Caminho para a frente e cega me persigo

Quem me consolará do meu corpo sepultado?

Sophia de Mello Breyner Andresen

Sunday, June 29, 2008

Padroeiro dos Pescadores

Antes de se tornar num dos doze discípulos de Cristo, Simão era pescador. Jesus mudou-lhe o nome para Petrus, que em latim significa «pedra». Pedro é considerado o "príncipe dos apóstolos", e com S. Paulo, funda a Igreja de Roma. Essa mudança de nome é significativa, Jesus deu mesmo a explicação, quando disse: "... Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; tudo que ligares na terra, será ligado nos céus; e tudo que desligares na terra será desligado nos céus". (Mt. 16, 18). Perseguido e condenado à morte, foi cruelmente açoitado, e crucificado em 64 d.C. No entanto pediu que o pregassem na cruz com a cabeça para baixo, porque se achava indigno de morrer como o divino Mestre. Assim morreu o primeiro Papa da Igreja Católica. No lugar do suplício foi mais tarde edificada a Basílica de São Pedro, onde se encontram os seus restos mortais. Na data de 29 de Junho é-lhe prestada homenagem, através de manifestações de religiosidade popular, um pouco por todo o lado no mundo.

Saturday, June 28, 2008

Existências


Anjos, existem anjos? Volúveis seres
Que são um instante de voluptuosa brisa
Em que o tempo é a forma do desejo
E do sono das folhas e das águas.
Anjos, sim, de terra, que segredam
A argila dos nomes, o movimento azul
Do ar. Na sua companhia eu sou o vento
E o meu hálito confunde-se com as suas vozes

Thursday, June 26, 2008

Constelação

De acordo com a mitologia grega, Europa foi uma mulher deslumbrante que despertou os amores de Zeus, deus do Olimpo. Segundo Homero, na Ilíada, ela seria de ascendência fenícia. Conta a lenda que Zeus a vira quando passeava com algumas amigas na praia, e não resistindo aos seus encantos, decide ir ao seu encontro na forma de um touro branco, de porte majestoso, e odor a açafrão. Encorajada pela mansidão do animal, aventura-se a cavalgá-lo, quando este dobra os joelhos, e se deita a seus pés, ornando-o com as flores que consigo levava na altura. Em seguida avançam pelo mar adentro, rompendo as ondas, nadando até à ilha de Creta, quando o touro se transfigura de novo no esplenderoso Zeus, e onde junto a uma fonte, debaixo de plátanos, o casal se amou. Dessa união entre a jovem e o deus supremo, nasceram três filhos, Radamant, Sarpedonte, e Minos que um dia vem a subir ao trono da ilha. Durante toda a vida, o pai da jovem a procura em vão, e uma vez morta, é elevada por Zeus à categoria de divindade, e para todo o sempre transformada em constelação.

Wednesday, June 25, 2008

Olhares

De cada vez que entro, ou saio de casa, não posso deixar de as contemplar. E este ano estão mais encantadoras que nunca, num vaso que tenho mesmo à porta. As hortênsias são plantas angiospérmicas da ordem das cornales, o que quer que tudo isto queira dizer. Aliás descobri que o seu nome científico é nem mais nem menos que «macrophylla hidrangeácea», o que se torna num palavrão difícil de pronunciar. Oriundas da Ásia Oriental, com folhas de bordo dentado, estas flores podem variar entre os tons rosados e os azuis. São sem dúvida uma das minhas preferidas, e das mais bonitas do mundo.

Tuesday, June 24, 2008

Amiga para a vida

Olhar pela saúde da Daisy é uma forma de retribuir todo o companheirismo dos já longos 13 anos da sua existência. Hoje foi dia de visitar a veterinária, para pesar, desparasitar, e vacinar! Vemo-la aqui, no consultório, com a Dra. Rita Lopes, em carinhosa pose!

Monday, June 23, 2008

Lifestyle

Os sapatos são de Manolo Blahnick, e o guarda-roupa tende a seguir as últimas tendências da moda. Após 6 anos de episódios, o Sexo e a Cidade deu origem à longa-metragem com o mesmo nome. Inspirado numa crónica cor-de-rosa do Observer, o filme relata-nos a vida de 4 amigas - independentes, bem instaladas na vida, e sexualmente livres, a viver numa das cidades mais fantásticas do mundo! A série foi um êxito, e o romance está aí! Eu já fui ver.

Saturday, June 21, 2008

Interpretações


A última etapa dos ciclos de leitura, proposta pela Biblioteca Municipal, teve lugar este fim-de-semana, com a presença do autor Gonçalo M. Tavares. Foram muitas as pessoas, que tal como eu, passo a passo foram seguindo este percurso, que contou com a participação do grupo de teatro A Gaveta, de Portimão, com pequenos excertos do livro do senhor Calvino, e com o apontamento criterioso do Professor Dr. Petra Petrov da Universidade do Algarve, que aliás veio tão generosamente a colaborar através de várias personagens, no decurso deste evento. «Aprender a rezar na Era da Técnica», vencedor do Prémio Portugal Telecom de Literatura de 2007 – o maior prémio literário em língua portuguesa do Brasil, cujo exemplar nos tinha sido oferecido o mês passado, foi o livro analisado nesta sessão. O autor pretendeu trazer a primeiro plano o facto de hoje rezarmos tal e qual da mesma forma que há 2 mil anos atrás, quando tudo o resto parece ter mudado, como se as palavras mantivessem a mesma força, independentemente do que nos rodeia. De linguagem concisa, e leitura fácil, apesar de denso no modo de sentir, foram as expressões utilizadas pelo professor, de origem búlgara, que assinala ainda o tema do forte e do fraco, fortemente explorado, num livro, cujas personagens perversas, nos parecem querer provocar. Diferente dos livros lúdicos do Bairro, uma coisa é certa, numa sociedade demasiado estandardizada, desinteressante, e cinzenta Gonçalo M. Tavares marca a diferença através do absurdo, e das histórias mais bizarras, por vezes violentas, que de contrário, se calhar não nos chamariam tanto a atenção, despertando-nos a consciência, e exaltando-nos a coragem, nos dias em que ela tanto falta nos faz. Obrigada ao Gonçalo, e também à Dra. Paula Miguel, pelo óptimo trabalho desenvolvido em prol da cultura, e pelos momentos altos que proporcionou a todos quantos aceitaram participar.

Friday, June 20, 2008

A sombra

O senhor Valéry não gostava da sua sombra, considerava-a a pior parte de si próprio. Deste modo, o senhor Valéry apenas saía de casa depois de estudar longamente o sol e verificar que não corria riscos de a sua sombra surgir.
O senhor Valéry explicava:
- É uma mancha que por vezes se torna visível e anuncia a morte. E desenhava.
Por essa razão o senhor Valéry saía de casa quase sempre de noite, percorrendo, com uma pequena lanterna, as ruas não iluminadas.
Quando os habitantes da cidade se preparavam para jantar e pela janela viam uma pequena luz avançando a passo certo, já sabiam que ali andava o senhor Valéry; e, por vezes, pela simpatia que aquela pequena obsessão provocava, abriam a janela e cumprimentavam-no:
- Boa noite, senhor Valéry, boa noite.
Apesar do aspecto franzino do senhor Valéry, as pessoas sentiam-se mais seguras sabendo-o por ali, de noite, a percorrer as ruas com uma lanterna.
Gonçalo M. Tavares

Thursday, June 19, 2008

O que nos une

Surgiu quase como uma causa nacional, e tornou-se contagiante. É assim de cada vez que Portugal entra em campo. Ninguém parece ficar-lhe indiferente, como se todos os subconscientes, sem excepção, vibrassem por vitórias, mais que assinaladas. Depois do desaire com a Suiça, a formação é outra, o relvado também, não chove, e até faz sol! E desta vez contamos com a presença do «jovem-maravilha». Favoritos? Pode ser…

Wednesday, June 18, 2008

Dançando de mãos dadas na lua

Deixa que a minha solidão
Prolongue mais a tua
- para aqui os dois de mãos dadas
Nas noites estreladas,
A ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão companheira,
Até o Abismo da Ternura Derradeira.


José Gomes Ferreira

Tuesday, June 17, 2008

Sinal de esperança

Li hoje algures, que um grupo de cientistas revelou ter descoberto um conjunto de 3 «super-terras», orbitando à volta dum sol, de dimensões ligeiramente mais pequenas que o nosso, sugerindo que muitos mais possam existir por aí. Ainda o mês passado, a sonda Phoenix, em missão não-tripulada da Nasa terá aterrado na região árctica de Marte, na expectativa de descobrir se por lá, afinal há ou não água gelada, ou se sequer alguma vez terá existido, visto alguns meteoritos terem cá vindo parar, suspeitando-se que possam eventualmente ter tido origem no planeta vermelho!? Nesta perspectiva não podemos excluir o facto de descendermos de marcianos, embora pessoalmente considere esta hipótese pouco provável. Afinal tudo não passa de especulações, e só talvez daqui a uns largos anos possamos descobrir ou não, o que estará por trás de tudo isto. Até lá, o braço articulado robótico da Phoenix continuará a escavar, confiando que as amostras recolhidas nos possam casualmente elucidar. Phoenix é a palavra grega para encarnado escuro, ou roxo – símbolo do renascimento. Surge-nos na mitologia grega como uma ave de rapina colorida, associada ao fogo, que após viver 500 anos, incendeia o seu próprio ninho, deixando-se consumir pelas chamas, para de novo renascer das cinzas - grande e poderosa, mais forte que a morte, e de carácter único e especial. Enquanto ela viver existirá eternamente esperança na humanidade.

Monday, June 16, 2008

Fantasias

Imagino paisagens como quem
sonha. Um quadro em que vou pondo outras
coisas: casa, terrenos vagos, uma ou outra
árvore, o sol da tarde. Até agora, uma
natureza morta. Na mesa da imaginação, o tampo
enche-se com estas imagens que vêm dos espaços
diversos em que uma vida se passa. Por baixo
da mesa, porém, sinto o teu pé tocar-me a perna. Vamos
embora, então: para onde nenhuma imagem nos
perturbe, e aí ficaremos sós, no espaço em branco
do amor.

Sunday, June 15, 2008

Escalada

Há um certo conto que diz
que a Arete mora em rochedos inacessíveis
e que um coro de sagradas ninfas celestes
a rodeia.
Porém não é visível aos olhos de todos
os mortais.
Não é visível àquele a quem não tenha vindo de dentro
o suor que consome o ânimo
e que não tenha chegado ao cume da coragem.

Saturday, June 14, 2008

Sem-fim

No mistério do sem-fim
equilibra-se um planeta.


E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro;
no canteiro uma violeta,
sobre ela, o dia inteiro,

entre o planeta e o sem-fim,
a asa de uma borboleta.


Cecília Meirelles

Friday, June 13, 2008

Aniversários

Não, o meu não, que não passo dum comum mortal. Refiro-me ao dele, que se fosse vivo faria hoje 120 anos. Sim, esse mesmo que está a pensar. Qual deles exactamente? Todos. Desde Bernardo Soares, ou Álvaro de Campos ao poeta fingidor, e o resto dos heterónimos. Um pacato funcionário de escritório que sabe-se lá como, ou porquê, dá lugar às múltiplas personagens por todos mais que conhecidas, transformando-se tão-somente no verdadeiro génio. Como muitos outros foi um espírito inquieto, por vezes desassossegado até, e um solitário, com a particularidade de possuir uma multidão dentro de si. Dotado de uma extraordinária capacidade de inventar, e nos conseguir transmitir a sonoridade do dia a dia, com os sonhos, angústias, e desilusões que dele fazem parte. O seu mundo era o dos livros, cheio de ideias, projectos, e ambiciosos planos, necessitando compulsivamente de escrever. Há nele um apelo interior tal, que o chega a fazer sem parar, durante noites maiores a fio, e em pé! Entrar no seu universo é embarcar numa autêntica viagem cósmica, que desagua na modernidade da nossa língua!

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
Fernando Pessoa

Wednesday, June 11, 2008

Recanto

Voltaram vai para um mês, para de novo partirem, um destes dias. Chegam de uma longa viagem, de milhares de quilómetros, tendo como destino o mesmo ninho, ano após ano, junto à minha porta de casa. A lama e as palhinhas mantêm-se intactas, servindo para acolher em conforto a nova geração. Quando o Outono chegar, partem de novo em debandada, em ágeis voos, cruzando os céus, rumo a sul, em busca de outras temperaturas. Para o ano serão de novo bem-vindas!

Descoberta

O dente morde a fruta envenenada
a fruta morde o dente envenenado
o veneno morde a fruta e morde o dente
o dente, se mordendo, já descobre
a polpa deliciosíssima do nada.

Tuesday, June 10, 2008

Pátria

Por um país de pedra e vento duro
Por um país de luz perfeita e clara
Pelo negro da terra e pelo branco do muro
Pelos rostos de silêncio e de paciência
Que a miséria longamente desenhou
Rente aos ossos com toda a exatidão
Dum longo relatório irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas
Palavras sempre ditas com paixão
Pela cor e pelo peso das palavras
Pelo concreto silêncio limpo das palavras
Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

— Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Eu minha vida daria
E vivo neste tormento

Sophia Mello Breyner Andresen

Sunday, June 8, 2008

Saídos da Imaginação


As várias disciplinas artísticas da universidade sénior de Albufeira serviram de pretexto para uma nova exposição na Galeria Municipal. Foram vários os projectos apresentados, na incursão da pintura e artes plásticas, e ainda decorativas. Embora esta apresentação não me causasse a surpresa do ano passado, importa realçar, não tanto as técnicas, mas as ideias e a recriação, num momento de maturidade, quando cada um debruçado sobre si mesmo, procura inspiração nas suas melhores memórias, atingindo por vezes níveis de complexidade abstracta, que se tornam verdadeiros enigmas ao nosso olhar!?
Este ano, a escrava, da autoria da Zizi é a minha eleita – mais que um corpo sensual, cativou-me sobretudo pela intensidade do seu olhar, e pela figura humana que representa.

Tertúlia ao Sol

Saturday, June 7, 2008

Mundos Achados

No outro dia andei por lá perto, e resolvi bater-lhe à porta. Agradavelmente surpreendida sorriu-me do cimo das escadas, e convidou-me a subir. A casa de concepção rústica está virada para um jardim relvado, e ao galgar a escadaria fui imediatamente transportada para o universo dos seus sonhos. Azulejos revestem parcialmente as paredes, os tectos parecem perder-se em altura, e todo o interior marcado pela tradição dos traços, não poderia ser mais acolhedor, e familiar. O mobiliário, as estantes a transbordar de livros, as peças com história, as mesinhas com fotos de família, as vitrinas repletas de colecções, ou qualquer outro objecto, se encontra habilmente posicionado. Nada está fora do lugar, e tudo é mantido em imaculada limpeza, à custa do seu próprio esforço. Nesse fim de manhã, o sol entrava a jorros através dos vidros cristalinos das janelas, que reluzindo de asseio, enalteciam os seus quadros, harmoniosamente distribuídos por tudo quanto é lado. São eles que lhe personalizam o espaço, transformando-o numa pequena grande galeria! Alguns evocam paisagens exóticas, outros jardins encantados, e outros ainda há, que nos levam até à tranquilidade das planícies alentejanas. Mais recentemente a sua imaginação sem limites impeliu-a para o abstracto – o arranque para um novo caminho, e para as cores mais intensas, transmitindo-nos uma energia, fora do comum, na sua idade avançada. De lá de fora ouvia-se o bulício da circulação automóvel, e avistava-se a Câmara Municipal. Conta-me até, que no último espectáculo da Dulce Pontes ao ar livre, foi dali mesmo, que o vislumbrou, sem quaisquer atropelos. Apesar de uma infância marcada pelo rigor de outros tempos, e de um itinerário de vida por vezes penoso, resistiu ao tempo abraçando a pintura como a sua maior forma de expressão. Simples, e despretensiosa, sem dúvida que a Tininha foi uma das pessoas, que verdadeiramente mais gostei de conhecer na UATI. E qualquer dia, quando por lá passar, sem hesitação volto a bater-lhe à porta.

Friday, June 6, 2008

Expectativa

Vieste, e fizeste bem.
Eu esperava, queimando de amor;
tu me trazes a paz.

Thursday, June 5, 2008

Chuva de rosas

No fim de Maio, princípio de Junho elas nunca deixam de surgir, e eis que aí estão em plena floração, no meu jardim. Cobrem-me o muro, e a cerca, simplesmente trepando por eles acima, em tons pálidos, deixando uma agradável fragrância no ar. O seu nome vem do latim rosa, e do grego rhodon – ilha repleta delas. Segundo a lenda grega, Chloris – deusa das flores, criou-a a partir do corpo de uma ninfa encontrada num bosque. Depois, Afrodite ter-lhe-á dado beleza, Dionísio o néctar, e Apolo fê-la florescer soberana! Dessas três graças nasce a flor das flores: a rosa! Há variadíssimas espécies, e estas de Santa Teresinha explicam-se por em muitas vilas em França ser costume vestir as crianças com o hábito de Sta. Teresinha, quando participava nas procissões do Corpo de Deus. Num gesto de carinho, por Jesus, à medida que andava deitava pétalas, tornando-se a Rosa o seu símbolo, que, morrendo, disse: «Do céu mandarei uma chuva de rosas».

Anel de Saturno

Esta noite sonhei oferecer-te o anel de Saturno
E quase ia morrendo com o receio de que ele não
Te coubesse no dedo

Wednesday, June 4, 2008

Filosofia

Agora que chegámos ao final de mais um ano lectivo, dedico esta poesia, em jeito de agradecimento, à minha professora de Filosofia Drª. Paula Serôdio:

Construo o pensamento aos pedaços: cada
ideia que ponho em cima da mesa, é uma parte do
que penso; e ao ver como cada fragmento se
torna um todo, volto a parti-lo, para evitar
conclusões.

Nuno Júdice

Tuesday, June 3, 2008

Fatalidades

Argentina aumenta o volume da televisão quando vem estender roupa na varanda. Ouvem-se cá fora os aplausos do público no estúdio, o fio ténue da voz dos que vão ao programa narrar as misérias dos seus quotidianos: uma rapariga que perdeu o pai e a mãe num desastre de automóvel, uma outra que esteve quase a suicidar-se por ser gorda e feia e lhe chamarem gorda e feia na escola, uma senhora que perdeu tudo e que agora pede ajuda para que lhe construam uma casa, uma mulher que foi violada pelo padrasto e nunca mais se endireitou na vida…
……… Ela não perde pitada enquanto vai estendendo a roupa, e às vezes, interrompe a tarefa para espreitar para dentro de casa e ver as imagens dos espectadores chorosos, os rostos em grande plano, o brilho das lágrimas recobrindo emocionados olhos. Argentina comove-se também. Comove-se muito. E enxuga as lágrimas num pano de cozinha que, logo depois, está corando ao sol que, de manhã, bate com força nas fachadas de Miragaia.

A Dona Argentina de Manuel Jorge Marmelo – O profundo Silêncio das manhãs de domingo

Monday, June 2, 2008

Ausência

Num deserto sem água
Numa noite sem lua
Num país sem nome
Ou numa terra nua
Por maior que seja o desespero
Nenhuma ausência é mais funda do que a tua.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Sunday, June 1, 2008

Privilegiada Boneca


Levava eu um jarrinho
Pra ir buscar vinho
Levava um tostão
Pra comprar pão:
E levava uma fita
Para ir bonita.

Correu atrás
De mim um rapaz:
Foi o jarro pra o chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!

Se eu não levasse um jarrinho,
Nem fosse buscar vinho,
Nem trouxesse uma fita
Pra ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia.

Fernando Pessoa (Poema para Lili – boneca da sua sobrinha Manuela)