Vieste como um barco
carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas
ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou
prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a
arquitectura fria do estaleiro
onde hoje me sentei a
perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se
acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo,
embora como um lume
de cera, lento e brando,
que já não derrama calor.
Tenho os olhos azuis de
tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os
pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo
cegueira pior do que a minha:
o fio do horizonte começou
ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as
mulheres que se passeiam
no cais como se
transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os
seus passos
que vale a pena esperar,
porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto
das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado
de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso,
vou para casa
e aguardo os sonhos,
pontuais como a noite.
Maria do Rosário Pedreira in O Canto do Vento nos Ciprestes