Wednesday, February 29, 2012

Em trânsito


Ao passear o meu fiel amigo
cruzo os gestos com o olhar
e colho do chão da terra
todas as flores brancas do tempo
e do espaço por onde passam
os dilemas do meu dia a dia.
A felicidade constrói-se ali
em improvisação permanente
que brota da inacessibilidade
de uma paisagem mais agreste.

Monday, February 27, 2012

Sem tempo

O nevoeiro envolve devagar
Casas e almas
Entranha-se na escrita e molha-me
As palavras
Que nascem da manhã num trabalho de parto
Suave e melancólico.

Sinto nas vértebras a indecisão
Da vida,
A memória encoberta,
Todo o meu corpo se dissolve
Numa cinza líquida.
Morrer assim, seria a despedida do meu signo,
Água na água,
Assim como era no princípio.
Sinto o passado fluir
Por entre sombras que o presente
Não quer interpretar.
Fluidos são também os prédios que me deixam
Num mar de leite aéreo,
Droga feliz, sem álcool, sem química,
Sem ressaca.

Futuro? Que futuro?
São as próprias palavras que já nascem
Sem tempo.

Agora nada me devora.
Se eu próprio erguesse os braços como um espectro,
Quem me apontaria o caminho,
Aqui,
Neste país submerso?


Armando Silva Carvalho

Sunday, February 26, 2012

Êxito e lucro

O mundo é conduzido por loucos e ambiciosos, que só têm em mira o êxito e o lucro, estão-se nas tintas para as preocupações dos poetas, que são, como toda a gente sabe, seres da utopia, essa utopia sem a qual não há progresso.

Eugénio de Andrade

Saturday, February 25, 2012

Trago nas mãos

Trago nas mãos um búzio ressoante
Onde os ventos do mar se reuniram,
e das mãos, ou do búzio murmurante,
alastra em cor e som irradiante
A beleza que os olhos despiram

José Saramago in Os Poemas Possíveis(Portugália, 1966)

Friday, February 24, 2012

Destaque

Decorreu neste fim de tarde, na Biblioteca Lídia Jorge, mais uma sessão integrada no ciclo de literatura de língua inglesa, pelo professor António Lopes da Universidade do Algarve. Invocando palavras e imagens, homenageou-se Oscar Wilde, dos êxitos à polémica da homossexualidade, que o terá levado à queda. Segundo este autor de linguagem acessível, humor refinado, exibicionista, e vaidade sem paralelo, a arte deveria transformar-nos o olhar e guiar as nossas vidas. Difícil seria mesmo imaginar melhor.
«A certeza é fatal. O que me encanta é a incerteza. A neblina torna as coisas maravilhosas.»
Oscar Wilde

Tuesday, February 21, 2012

Retratos vivos

Ocultos de nós próprios, vivemos como se usássemos máscaras. Debaixo delas tudo se oculta e inventa a cada passo como forma de libertação, manipulando na sombra a transparência que a realidade omite.

Sunday, February 19, 2012

Procura-se futuro

Primeiro abatem-nos o sistema produtivo. Destruído o consumo, com o andar da carruagem, o empobrecimento torna-se de igual modo enigmático, generalizado. Crescemos pouco, sem que um novo caminho nos seja apontado, e com uma economia tão pequena e sem protecção, tudo o mais parece resvalar. A crise não pode resultar duma culpa moral, e a preocupação com o amanhã, infelizmente, não depende apenas da nossa vontade. As hesitações numa solução, e uma moeda demasiado forte mergulharam-nos no início do fim da Europa.

Saturday, February 18, 2012

Outras há

Vem ver a vida
passar silenciosamente
como a ave no ar claro.

Vê-a que desce. Prende-a.
Nas tuas mãos em concha
fica um instante.

Deixa-a fugir. Outras há.


Ruy Cinatti in O Livro do Nómada Meu Amigo (1981)

Wednesday, February 15, 2012

Interlocuções

E quando o céu se torna tenebrosamente nublado, tento recolher o maior número de imagens meio esquecidas. Por esse caminho, elas quase ganham voz, emergindo num diálogo que guardo em silêncio do que pode vir a ser fatídico.

Tuesday, February 14, 2012

Quando fecho os olhos

Em longa e exultada sequência de passos, vou avançando para um terreno de curvas e contracurvas. Numa fase de aproximação de incontrolável ímpeto, troco segredos e confidências, e dou e recebo afectos cedendo ao inevitável.

Sunday, February 12, 2012

Sopro

A vida é sopro suave.

João de Deus

Saturday, February 11, 2012

Abismo interior

Há um raio de sol que nem sempre nos aquece. Ao alcance de todos, escapa-se-nos, e regressa de igual modo enigmático para lá de todas as suas qualidades.

Friday, February 10, 2012

A esperança

(...) Estava para lá da desilusão. Era cada vez menos a mãe dele. Sentia-se condenada e não abençoada. A maternidade abençoava. Aquilo não. O rapaz limpou-se às mangas, tentou talvez abraçá-la, mas ela fugiu-lhe, e ele pensou que estava obrigado a conquistar tudo de novo. Tudo o que seria seu por natureza, e que a natureza se esforçara por lhe levar, ele teria de reconquistar. Era como encontrar modo de regressar a uma máe. Voltar ao interior que tudo imagina e renascer perdoado, um filho perfeito. Os filhos perdoados são outra vez perfeitos. Ficou com essa esperança.
Valter Hugo Mãe in O filho de mil homens - Alfaguara 2011

Wednesday, February 8, 2012

Expansão de horizontes

Tudo está lá. Nas imagens perfeitas, que nos esvaziam, e fazem perder o sentido da distância. Advinha-se muito mais do que se vê, dando lugar ao espaço abstracto atrás do qual se esconde no decurso dos dias.

Sunday, February 5, 2012

O lugar de silêncio

Amo devagar os amigos que são tristes com cinco dedos de cada lado.
Os amigos que enlouquecem e estão sentados, fechando os olhos,
com os livros atrás a arder para toda a eternidade.
Não os chamo, e eles voltam-se profundamente
dentro do fogo.
— Temos um talento doloroso e obscuro.
Construímos um lugar de silêncio.
De paixão.

Herberto Helder

Friday, February 3, 2012

Uma manhã

A manhã é um leque
branco
desdobrado até
aos quatro pontos cardiais

Sol branco
imperador fraterno
do azul muito ténue

Alberto de Lacerda in Átrio (1997)

Thursday, February 2, 2012

A estreiteza dos dias

Fevereiro, o mais curto mês e o menos cortês.

provérbio popular