Thursday, November 14, 2013

Refém de uma má opção

Apesar de ela compreender que a toponímia era essencial para preservar as raízes de cada localidade, propunha uma revisão mais cuidada ao nome da sua rua, através de uma nova leitura que, se ajustasse a uma informação factual isenta de artifícios. E que, mesmo longínqua no tempo, fosse real, e se relacionasse com uma lógica agora inexistente. Não se importava que evocassem um passado, mas ao mesmo tempo, exigia que lhe prometessem um futuro que, a partir de recordações concretas, conduzissem o processo a uma escolha consensual e justa.  

Wednesday, November 13, 2013

Uma coisa inocente

Estendi a mão por qualquer coisa inocente
 uma pedra, um fio de erva, um milagre
 preciso que me digas agora
 uma coisa inocente

 Não uses palavras
 qualquer palavra que me digas há-de doer
 pelo menos mil anos
 não te prepares, não desejes os detalhes
 preciso que docemente o vento
 o longínquo e o próximo
 espalhe o amor que não teme

 Não uses palavras
 se me segredas
 aquilo que no fundo das nossas mentiras
 se tornou uma verdade sublime

José Tolentino Mendonça 


Tuesday, November 12, 2013

Apoteose final


Monday, November 11, 2013

Por portas e travessas

Através dos vidros límpidos, atrás dos quais se escondia, a cada dia retomava o registo da vida de personagens a quem dava vida. Os movimentos e as expressões dos corpos, e os passos apressados, tal como os mais miudinhos, transformavam-se numa experiência de partilha num contínuo recomeçar. Em cada um deles procurava uma história que, ainda que a preto e branco, deixasse advinhar, com exactidão, os mais variados retratos, dentro da maior diversidade, no pressuposto de que pudessem existir.

Sunday, November 10, 2013

A dúvida

Então, enchendo-se de curiosidade, correu atrás do coelho campo afora, chegando justamente a tempo de o ver desaparecer numa grande toca sob a cerca. No instante seguinte, Alice entrou na toca atrás dele, sem sequer pensar em como é que iria sair dali depois.

A toca do coelho, de início, alongava-se como um túnel, mas de repente abria-se como um poço, tão de repente que Alice nem teve um segundo sequer para pensar em parar, antes de cair no que parecia ser um buraco muito fundo. Ou o poço era profundo demais, ou ela caía muito devagar, pois teve tempo de sobra durante a queda para olhar em volta e perguntar-se o que iria acontecer a seguir.

Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas

Saturday, November 9, 2013

Da tranquila distância

De longe te hei-de amar 
- da tranquila distância 
em que o amor é saudade 
e o desejo, constância. 


Cecília Meireles in Canções

Friday, November 8, 2013

Uma análise aprofundada

Por um ímpeto, tudo somado poderia considerar-se valioso. Uma panóplia de elementos que se tornara um bom exemplo duma colecção essencialmente romântica. Eis, o seu espaço-tempo de sonho! Poderia ter recolhido caixas de fósforos, bilhetes de autocarro, antigos cromos, ou encaixilhado borboletas espalmadas, ou optado por apanhar pequenas conchas na praia, mas a sua escolha revelava-se, afinal, mais inventiva. Rebuscadas procuras, davam destaque a outro tipo de objectos que, certamente exigiriam algum investimento, ao longo dos anos. Contudo, a necessidade de guardar era mais forte que qualquer outra coisa, e o início do seu espírito empreendedor.

Thursday, November 7, 2013

Um suicídio

Diz-se que a tarde cai. Diz-se que a noite também cai. Mas eu encontro o contrário: a manhã é que cai. Por um cansaço de luz, um suicídio da sombra.


Mia Couto in O Fio das Missangas

Wednesday, November 6, 2013

Efeito multiplicador


Tuesday, November 5, 2013

O talento humano

O actor acende a boca. Depois, os cabelos.
Finge as suas caras nas poças interiores.
O actor põe e tira a cabeça
de búfalo.
De veado.
De rinoceronte.
Põe flores nos cornos.
Ninguém ama tão desalmadamente
como o actor.
O actor acende os pés e as mãos.
Fala devagar.
Parece que se difunde aos bocados.
Bocado estrela.
Bocado janela para fora.
Outro bocado gruta para dentro.
O actor toma as coisas para deitar fogo
ao pequeno talento humano.
O actor estala como sal queimado.

O que rutila, o que arde destacadamente
na noite, é o actor, com
uma voz pura monotonamente batida
pela solidão universal.
O espantoso actor que tira e coloca
e retira
o adjectivo da coisa, a subtileza
da forma,
e precipita a verdade.
De um lado extrai a maçã com sua
divagação de maçã.
Fabrica peixes mergulhados na própria
labareda de peixes.
Porque o actor está como a maçã.
O actor é um peixe.

Sorri assim o actor contra a face de Deus.
Ornamenta Deus com simplicidades silvestres.
O actor que subtrai Deus de Deus.
e dá velocidade aos lugares aéreos.
Porque o actor é uma astronave que atravessa
a distância de Deus.
Embrulha. Desvela.
O actor diz uma palavra inaudível.
Reduz a humidade e o calor da terra
à confusão dessa palavra.
Recita o livro. Amplifica o livro.
O actor acende o livro.
Levita pelos campos como a dura água do dia.
O actor é tremendo.
Ninguém ama tão rebarbativamente
como o actor.
Como a unidade do actor.

O actor é um advérbio que ramificou
de um substantivo.
E o substantivo retorna e gira,
e o actor é um adjectivo.
É um nome que provém ultimamente
do Nome.
Nome que se murmura em si, e agita,
e enlouquece.
O actor é o grande Nome cheio de holofotes.
O nome que cega.
Que sangra.
Que é o sangue.
Assim o actor levanta o corpo,
enche o corpo com melodia.
Corpo que treme de melodia.
Ninguém ama tão corporalmente como o actor.
Como o corpo do actor.

Porque o talento é transformação.
O actor transforma a própria acção
da transformação.
Solidifica-se. Gaseifica-se. Complica-se.
O actor cresce no seu acto.

Faz crescer o acto.
O actor actifica-se.
É enorme o actor com sua ossada de base,
com suas tantas janelas,
as ruas -
o actor com a emotiva publicidade.
Ninguém ama tão publicamente como o actor.
Como o secreto actor.

Em estado de graça. Em compacto
estado de pureza.
O actor ama em acção de estrela.
Acção de mímica.
O actor é um tenebroso recolhimento
de onde brota a pantomima.
O actor vê aparecer a manhã sobre a cama.
Vê a cobra entre as pernas.
O actor vê fulminantemente
como é puro.
Ninguém ama o teatro essencial como o actor.
Como a essência do amor do actor.
O teatro geral.

O actor em estado geral de graça.


Herberto Helder

Monday, November 4, 2013

Um mau indício

Nada a fazia retirar-se do seu centro. A máscara apropriara-se da sua pessoa, corroendo-a e pervertendo-a até às últimas consequências numa demonstração de versatilidade. A qualquer momento, todo o tipo de manobras e interferências indevidas são por ela desencadeadas ao mais ínfimo pormenor, o que nos levava a pensar que ela cultivava uma espécie de prazer com toda aquela trama. Numa verdadeira descida aos abismos, tece as suas técnicas em várias direcções, num quase perfeito equilibrismo, como se de um jogo se tratasse. E, para que conste, não se fixa, apenas, num ideal. De um modo geral, vai-se desdobrando, fazendo uso de todos, e deitando a mão a tudo sob as mais variadas formas e versões, num combate táctil, que a parece fascinar. Porém, será que o vazio humanamente insuportável, mais do que qualquer coisa, a iria fazer confrontar-se com a consciência do disfarce que envergava?

Sunday, November 3, 2013

A surpresa

Com a chegada do outono, as folhas das árvores começaram a ficar amareladas e foram caindo, espalhando-se pelo chão. Foi quando olhando para o céu, o patinho feio viu os cisnes brancos.
- Que lindo e como voam!
Olhem só, mas que surpresa! O que estará realmente a acontecer?
Não acreditando, foi olhar a sua imagem reflectida no lago.
- Que surpresa, eu sou um cisne também!


Hans Christian Andersen in O patinho feio

Saturday, November 2, 2013

Paixão

Não busques a paixão.
Ela, que não sabes onde está,
te encontrará


Casimiro de Brito

Friday, November 1, 2013

Pergunta-me

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer


Mia Couto

Wednesday, October 30, 2013

Os primeiros ensaios



Tuesday, October 29, 2013

O lugar

Levo comigo uma origem e um destino. Levo comigo um sentido. Irreversível como um mergulho, não me perturbo. Eu tenho um lugar. Sinto que lhe conheço cada detalhe e, no entanto, todos os dias o exploro e lhe encontro novidade.

José Luís Peixoto 

Monday, October 28, 2013

A via da esperança

Só lhes restava repensar as alternativas, redistribuindo os sacrifícios. Na ânsia de se alcançar um objectivo matematicamente inatingível os estragos poderiam tornar-se irreversíveis, e todos tinham consciência disso. A falta de capacidade negocial, certamente, também não lhes permitia antever um futuro brilhante, e o desinvestimento na nova geração fazia-os pensar que a curto prazo só a incerteza lhes dominaria os dias. A não ser que, algum iluminado, de entre a comunidade, encontrasse um outro caminho de reorganização suficiente para alterar as directrizes que, lhes reforçasse a confiança.

Sunday, October 27, 2013

Evocar memórias

Dedicado à minha amiga L

A conversa arrancava, sempre, à volta de África que, ela descreve de forma emotiva com depoimentos na primeira pessoa e destaque para a nostalgia. A verdade, porém, é que a vida lhe trocara as voltas, umas atrás das outras, abrindo e fechando ciclos que, a marcariam para sempre. De tal maneira que, as sensações, muitas vezes, se transformavam em imagens reais e explícitas.

Saturday, October 26, 2013

O caminho da saudade


 Regresso devagar ao teu
 sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
 não é nada comigo. Distraidíssimo percorro
 o caminho familiar da saudade,
 pequeninas coisas me prendem,
 uma tarde no café, um livro. Devagar
 te amo e às vezes depressa,
 meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
 regresso devagar a tua casa,
 compro um livro, entro no
 amor como em casa.

 Manuel António Pina

Friday, October 25, 2013

O poder dos gestos