Saturday, November 8, 2014

Empatia cénica



Friday, November 7, 2014

Depois de ti

Se tiveres de escolher um reino
escolhe o relento
a noite tem brancura do alabastro
ou mais extraordinária ainda

Ao que vem depois de ti
cede o instante
sem pronunciar
seu nome

José Tolentino Mendonça in O Viajante sem Sono - Assírio & Alvim, 2009

Thursday, November 6, 2014

Espaço da infância

Convoco a memória do espaço da infância
para com ela entender o esquivo sofrimento
se em finitude me leva à inquieta beira
a prosseguir temendo à revelia do tempo

Não são os segredos mas o sinal sem norte
transportando consigo transbordante e breve
o desacerto que a vertigem liga ao abandono
seduzindo-me menina entregue à sua sorte

Foge o encanto e ainda mais amargo
na maçã o veneno dói e reclina
em desmesura unindo a fera e o afago

Desamado afecto na turvação que ensina
ao punhal, a empurrar a ponta do cuidado
cruel e indiferente à própria estima


Maria Teresa Horta in Inquietude - Vila Nova de Famalicão - Edições Quasi, 2006

Wednesday, November 5, 2014

A descendência

Hoje, passada a madrugada, continuei o dia com a minha parte mais sombria; soltaram-se-me as minhas recordações, presentes, passadas e futuras, e não encontrava caminho linear entre elas.
Não só importa escrever sucessivamente, mas saber quem me sucederá numa constelação de sentidos.
O que é a descendência?
A seiva sobe e desce numa árvore, estende-se pelos ramos, e é regulada pelas estações; eu e a árvore dispomo-nos uma para a outra, num lugar por nomear. Este lugar não tem significação de dicionário, não transmigrou para nenhum livro.
Agora o sol, o solo, a solo, encadeiam-me nas palavras. Esta madrugada aproximei-me da certeza de que o texto era um ser.

Maria Gabriela Llansol in um falcão no punho - Edições Rolim, 1985

Tuesday, November 4, 2014

Os dez dedos

queria fechar-se inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena

poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima


Herberto Helder in A Morte sem Mestre - ed. Porto Editora, 2014

Monday, November 3, 2014

Em diagonal

Murmuro o teu nome ao rés da relva
Murmuro-o
Em diagonal da terra ao céu azul
Radiante
Felicíssimo
Não entendo nada.


Alberto de Lacerda in Resumo

Sunday, November 2, 2014

Por gestos lhe respondo

O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos
lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes. 

Luiza Neto Jorge in Difícil Poema de Amor – Poesia - Assírio & Alvim - 2ª edição – 2001

Saturday, November 1, 2014

Em pleno centro


Friday, October 31, 2014

A coreografia

Sem sinais de recuperação, a natural aspiração pelo poder levava-os a uma encenação. Quando diziam o que as pessoas queriam ouvir era como se lhes vendessem uma ilusão. Com soluções de recurso, ausência de motivação e sem qualquer noção de futuro a apatia generalizara-se entre o povo. O peso da dívida impedia-lhes o crescimento e, uma vez mais, adiava-lhes todos os sonhos. 

Thursday, October 30, 2014

Sem janelas

As nuvens não se rasgaram
nem o sol: só a porta
do meu quarto

A abrir-se noutras
portas dando para outros
quartos e um corredor ao fundo

Não havia janelas nem
silêncios: sinfonias por dentro
a rasgar o silencio

A porta do meu quarto
já nem porta: madeiramento
para o fogo

Ana Luisa Amaral

Wednesday, October 29, 2014

A grandeza

Estou só - estás só. Não penses. Não fales. És em ti apenas o máximo de ti. Qualquer coisa mais alta do que tu te assumiu e rejeitou como a árvore que se poda para crescer. Que te dá pensares-te o ramo que se suprimiu? A árvore existe e continua para fora da tua acidentalidade suprimida. O que te distingue e oprime é o pensamento que a pedra não tem para se executar como pedra. E as estrelas, e os animais. Funda aí a tua grandeza se quiseres, mas que reconheças e aceites a grandeza que te excede.

Vergílio Ferreira in Para Sempre

Tuesday, October 28, 2014

Eras tu somente

Escrevo já com a noite
em casa. Escrevo
sobre a manhã em que escutava
o rumor da cal e do lume,
e eras tu somente
a dizer o meu nome.
Escrevo para levar à boca
o sabor da primeira
boca que beijei a tremer.
Escrevo para subir
às fontes.
E voltar a nascer.

Eugénio de Andrade in Os Sulcos da Sede 

Monday, October 27, 2014

A aliança

Tornou-se a peça que faltava para lhe preencher o vazio e encontrar a ternura que procurava. Estendido no chão, ou mais próximo dela, a persistência do olhar espelhava a percepção clara da mais intensa das cumplicidades na travessia simultânea para além do tempo e de um espaço.

Sunday, October 26, 2014

Monólogo de memórias


Saturday, October 25, 2014

Uma outra versão



Quando músicas que julgamos conhecer bem, com um diferente arranjo nos são apresentadas de uma forma tão diferente é de jazz que estamos a falar. A fabulosa Orquestra de Jazz do Algarve celebrou hoje no Auditório Municipal de Lagoa o seu 10º aniversário com um repertório de clássicos do jazz ao swing de elevada criatividade. Parabéns.

Friday, October 24, 2014

Mil demónios

o vento tem mil demónios soprando na tarde: assobiam-me, chamam-me, dizem-me que vá.

Manuel Jorge Marmelo

Thursday, October 23, 2014

À espera

Estou à espera da noite contigo
venham as pontes ruindo sob os barcos
venham em rodas de sol
os montes os túneis e deus

Luiza Neto Jorge in A noite vertebrada

Wednesday, October 22, 2014

Gestos

 
Que saia a última estrela
 da avareza da noite
 e a esperança venha arder
 venha arder em nosso peito
E saiam também os rios
 da paciência da terra
 É no mar que a aventura
 tem as margens que merece
  E saiam todos os sóis
 que apodreceram no céu
 dos que não quiseram ver
 mas que saiam de joelhos
 E das mãos que saiam gestos
 de pura transformação
 Entre o real e o sonho
 seremos nós a vertigem


 Alexandre O'Neill, in Poesias Completas

Tuesday, October 21, 2014

Mais ainda

Porventura não poderia ser tão explícito. Oriundo no intimo mais profundo, o seu olhar não se perdia em metafísicas abstractas, mas antes parecia eternizar instantes ora cor de rosa ora hostis. Bastava-lhe a integralidade para sem recorrer a quaisquer recursos estilísticos nos facultar uma infinidade de pistas.

Monday, October 20, 2014

À tardinha

Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...


Florbela Espanca in Charneca em Flor