«Tarde. Olho pela última vez a brancura imaculada dos terraços com o céu todo de oiro em cima e deixo com saudade esta luz e esta terra embruxada.
Teria aqui uma casa numa das vielas fedorentas mais escusas. Para o exterior um muro sem uma janela, um muro velho, com um postigo mais velho ainda para entrar. Aberta a porta, seria um deslumbramento: no pátio caiado, só luz e folhas gordas, da variedade dos cactos que dão flor vermelha, humedecidas de água sempre a escorrer. Teria duas escravas para me servirem frutos translúcidos acabados de apanhar.
Teria um barco para o contrabando nos mercados de Gibraltar e Marrocos, satisfazendo assim os meus velhos instintos de pirata. E de noite, a este luar que tem não sei o quê de mulher, de pele de mulher, de seios duros e brancos de mulher, dormiria na soteia sob as estrelas, grandes como fogachos.
Era viver num meio adormecimento, seduzido pela luz, fora de todos os interesses e realidades, em Portugal e no Sonho...»
Raul Brandão - Agosto de 1922
No comments:
Post a Comment