Subitamente, no meio da confusão da livralhada, descubro o
álbum da tia Dulce. Estou cansado e sento-me. É um álbum velho, pesado como o
tempo. A capa arredonda-se em almofada, com uma dama antiga, em tons verdes e
brancos, segurando no regaço um leque fechado. Cinta instantânea, seios
pequenos, um olhar enviesado de galanteio clandestino. As folhas cartonadas só
se passam devagar; e em cada face da folha, só um ou dois retratos. Vida
efémera. Tão breve. E aí, o sonho invencível da solidez, de uma unicidade
eterna. Retrato de grupo há só um. Mas as figuras não estão centradas para um
ponto único, não nos olham nem se olham, altivas na sua independência. Viram-se
para a esquerda e para a direita, para o alto, para a frente, num desafio
arrogante. Cerro os olhos e sei de novo que toda esta gente morreu. Mas o que
mais me perturba é pensar que o rasto dessa gente está suspenso de mim. Porque
eu tenho ainda uma pequena notícia da sua vida, o eco apagado do que foi a
massa complexa do seu ser e sentir.
Vergílio Ferreira in Aparição
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