Monday, March 3, 2014

As planas constelações de espelhos

O espelho é uma chama cortada, um astro.
E há uma criança perpétua, por dentro, quando se vive em recintos
cheios de ar alumiado. De fora, arremessam-se
               às janelas
as ressacas vivas dos parques. Ela toca o nó
               do espelho de onde salta
uma braçada de luz. Cada lenço que ata,
               a própria seda do lenço
o desata. E o rosto que jorra do espelho
               volta aos centros
               arteriais.


Todos os anos fundos, essa extensa criança
sente brotar da terra como árvores
               do petróleo
a peste bubónica, fina na temperatura, alastrada nos bordados
das paredes ou nas crateras da cama. Os lençóis
               nascem do linho que trepida
no abismo da terra, das sementes abraçadas pelas ramas
               das nebulosas.


É perfeito o espelho quando apanha
               um rosto nuclear.
Morre-se muito mais em cada doença, nesses
apartamentos que as noites sufocam
               nos braços de mármore.
               A energia das jóias.
O nó do sexo no espelho, as chamas agarradas
               entre o umbigo e o ânus.
Esse trabalho da claridade quando as válvulas
               se destapam


Correntes atómicas passam de lado a lado.
E ficam os buracos furiosos por onde o mundo
               sopra
               um meteoro a jacto, uma cara.
Os jardins deslocam-se através de si próprios
               com as centelhas, defronte
das planas constelações dos espelhos.


E então, na assimetria severa, ela amaria
               transformar-se,
súbita e solar  -  equinocialmente no espelho o relâmpago
               côncavo do girassol
espacial.  Que sai assim do corpo: os filões arrancados
               desse mesmo espelho.
E ela imagina na teia de fogo a argila que se transmuda
em porcelana: a curva labareda de uma chávena
               expelida dos fornos.
E entre guardanapos, da mesa à boca,
arde em seu anel de estrelas metalúrgicas
               a colher em órbita
               -   a assombrosa força terrestre da chávena.
E a infância desaparece nas funduras das casas,
               com os electrões fechados.



herberto helder in POESIA TODA - ASSÍRIO & ALVIM  1990

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