Sem sinais de recuperação, a natural
aspiração pelo poder levava-os a uma encenação. Quando diziam o que as pessoas
queriam ouvir era como se lhes vendessem uma ilusão. Com soluções de recurso, ausência
de motivação e sem qualquer noção de futuro a apatia generalizara-se entre o
povo. O peso da dívida impedia-lhes o crescimento e, uma vez mais, adiava-lhes todos
os sonhos.
Friday, October 31, 2014
Thursday, October 30, 2014
Sem janelas
As nuvens não se rasgaram
nem o sol: só a porta
do meu quarto
A abrir-se noutras
portas dando para outros
quartos e um corredor ao fundo
Não havia janelas nem
silêncios: sinfonias por dentro
a rasgar o silencio
A porta do meu quarto
já nem porta: madeiramento
para o fogo
Ana Luisa Amaral
Wednesday, October 29, 2014
A grandeza
Estou só - estás só. Não penses. Não fales. És em ti apenas o
máximo de ti. Qualquer coisa mais alta do que tu te assumiu e rejeitou como a
árvore que se poda para crescer. Que te dá pensares-te o ramo que se suprimiu?
A árvore existe e continua para fora da tua acidentalidade suprimida. O que te
distingue e oprime é o pensamento que a pedra não tem para se executar como
pedra. E as estrelas, e os animais. Funda aí a tua grandeza se quiseres, mas
que reconheças e aceites a grandeza que te excede.
Vergílio Ferreira in Para Sempre
Tuesday, October 28, 2014
Eras tu somente
Escrevo já com a noite
em casa. Escrevo
sobre a manhã em que
escutava
o rumor da cal e do lume,
e eras tu somente
a dizer o meu nome.
Escrevo para levar à boca
o sabor da primeira
boca que beijei a tremer.
Escrevo para subir
às fontes.
E voltar a nascer.
Eugénio de Andrade in Os
Sulcos da Sede
Monday, October 27, 2014
A aliança
Tornou-se a peça que faltava para
lhe preencher o vazio e encontrar a ternura que procurava. Estendido no chão, ou
mais próximo dela, a persistência do olhar espelhava a percepção clara da mais
intensa das cumplicidades na travessia simultânea para além do tempo e de um
espaço.
Sunday, October 26, 2014
Saturday, October 25, 2014
Uma outra versão
Quando músicas que julgamos
conhecer bem, com um diferente arranjo nos são apresentadas de uma forma tão
diferente é de jazz que estamos a falar. A fabulosa Orquestra de Jazz do Algarve
celebrou hoje no Auditório Municipal de Lagoa o seu 10º aniversário com um repertório
de clássicos do jazz ao swing de elevada criatividade. Parabéns.
Friday, October 24, 2014
Mil demónios
o vento tem mil demónios soprando na tarde: assobiam-me,
chamam-me, dizem-me que vá.
Manuel
Jorge Marmelo
Thursday, October 23, 2014
À espera
Estou à espera da noite contigo
venham as pontes ruindo sob os barcos
venham em rodas de sol
os montes os túneis e deus
Luiza Neto Jorge in A noite vertebrada
Wednesday, October 22, 2014
Gestos
Que saia a última estrela
da avareza da noite
e a esperança venha
arder
venha arder em nosso
peito
E saiam também os
rios
da paciência da terra
É no mar que a
aventura
tem as margens que
merece
que apodreceram no
céu
dos que não quiseram
ver
mas que saiam de joelhos
E das mãos que saiam
gestos
de pura transformação
Entre o real e o
sonho
seremos nós a
vertigem
Alexandre O'Neill, in Poesias Completas
Tuesday, October 21, 2014
Mais ainda
Porventura não poderia ser tão explícito.
Oriundo no intimo mais profundo, o seu olhar não se perdia em metafísicas
abstractas, mas antes parecia eternizar instantes ora cor de rosa ora hostis.
Bastava-lhe a integralidade para sem recorrer a quaisquer recursos estilísticos
nos facultar uma infinidade de pistas.
Monday, October 20, 2014
À tardinha
Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...
Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...
Florbela Espanca in Charneca em Flor
Sunday, October 19, 2014
Algo ainda não é flor
Estou um pouco ébria e estou
crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel
ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma
torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede
e a da chama.
Com esta pequena centelha
quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo.
Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das
árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo
ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou
entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez
e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem
a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser
aberto por uma palavra.
António Ramos Rosa
Saturday, October 18, 2014
Friday, October 17, 2014
Ser gato
Nunca soube o teu nome. Entraste numa
tarde,
por engano, a perguntar se eu era outra
pessoa -
um sol que de repente acrescentava cal aos
muros,
um incêndio capaz de devorar o coração do
mundo.
Não te menti; levantei-me e fui levar-te à
porta certa
como um veleiro arrasta os sonhos para o
mar; mas,
antes de te deixar, disse-te ainda que
nessa tarde
bem teria gostado de chamar-me outra coisa
- ou
de ser gato, para poder ter mais do que
uma vida.
Maria do Rosário Pedreira in nenhum nome depois - gótica, 2004
Thursday, October 16, 2014
Não me acordes
e quanto mais amada
mais desisto:
quanto mais tu me
despes mais me cubro
e quanto mais me
escondo mais me avisto.
E sei que mais te
enleio e te deslumbro
porque se mais me
ofusco mais existo.
Por dentro me
ilumino, sol oculto,
por fora te
ajoelho, corpo místico.
Não me acordes.
Estou morta na quermesse
dos teus beijos.
Etérea, a minha espécie
nem teus zelos
amantes a demovem.
Mas quanto mais em
nuvem me desfaço
mais de terra e de
fogo é o abraço
com que na carne
queres reter-me jovem.
Natália
Correia
Wednesday, October 15, 2014
A luz que estremecia
tão fortes eram que sobreviveram à língua
morta,
esses poucos poemas acerca do que hoje me
atormenta,
décadas, séculos, milénios,
e eles vibram,
e entre os objectos técnicos no
apartamento,
rádio, tv, telemóvel,
relógios de pulso,
esmagam-me por assim dizer com a sua
verdade última
sobre a morte do corpo,
dizem apenas: igual ao pó da terra que não
respira,
o que é falso, pois eu é que deixarei de
respirar
sobre o pó da terra que respira,
entre o poema sumério e este poema de
curto fôlego,
mas que talvez respire um dia,
ou dois, ou três dias mais:
quanto às coisas sumérias: as mãos da
rapariga,
o cabelo da estreita rapariga,
a luz que estremecia nela,
tudo isso perdura em mim pelos milénios
fora,
disso, oh sim, é que eu estou vivo e
estremeço ainda
Herberto
Helder in A Morte sem Mestre - ed. Porto Editora, 2014
Tuesday, October 14, 2014
Noite de ópera
Árias e duetos de óperas de Donizetti, Rossini, Puccini, Bellini, Verdi e Bizet. Espectáculo narrado por Paulo Segurado, com a participação da soprano Carla Pontes, o baixo-barítono Francisco Brazão e a pianista Cristiana Silva.
Monday, October 13, 2014
O abandono
Calo-me.
Reparei de repente que não estavas aqui.
Pus-me a falar a falar. Coisas
de mulher desabitada.
Luiza Neto Jorge in Difícil Poema de Amor – Poesia - Assírio
& Alvim - 2ª edição - 2001
Sunday, October 12, 2014
O despertar
Depois de viver verdadeiras aventuras num mundo imaginário,
na companhia de tantas singulares personagens, é que Alice se dá conta que tudo
não passara de um sonho e que estava de volta à realidade, acordando daquela
viagem absolutamente fantástica.
Saturday, October 11, 2014
Friday, October 10, 2014
Proteja-se
Cuide-se como se você fosse de ouro. Ponha-se você mesma de
vez em quando numa redoma e poupe-se.
Clarice Lispector
Thursday, October 9, 2014
Coisas leves
Não sei tecer
senão espumas,
nuvens
e brumas.
Coisas breves,
leves,
que o vento desfaz.
Como prender-te
em teia tão frágil?
Luísa Dacosta in A Maresia e o Sargaço dos Dias
Wednesday, October 8, 2014
Curto episódio
Era apenas mais um final de tarde,
e o facto de nunca querer perder o que quer que fosse. Naquele dia sombrio, observava duas crianças apostadas em moldar
um castelo à beira mar – uma lufada de criatividade, pronto a desmoronar-se à
mercê de uma onda mais inconsequente. Nada de somenos importância, visto a sua
diferencialidade não desaparecer, mas pelo contrário, abrir novas
possibilidades de um jogo cuja mecânica seria infinita.
Tuesday, October 7, 2014
A manhã
Não aprofundes o teu tédio.
Não te entregues à mágoa vã.
O próprio tempo é o bom remédio:
bebe a delícia da manhã.
Manuel Bandeira
Monday, October 6, 2014
Sunday, October 5, 2014
Sequência final
A dada altura, quando nada mais parecia
vibrar à sua volta o momento exigia-lhe um novo olhar. O que procurava, afinal?
Nesse sentido, redesenha um inimaginável refúgio para a realidade, num mundo à
parte no qual redescobre a poesia, ao ritmo da ondulação.
Saturday, October 4, 2014
A dúvida
Primeiro sabem-se as respostas.
As perguntas chegam depois,
como aves voltando a casa ao fim da tarde
e pousando, uma a uma, no coração
quando o coração já se recolheu
de perguntas e respostas.
Que coração, no entanto pode repousar
com o restolhar de asas no telhado?
A dúvida agita
os cortinados
e nos sítios mais íntimos da vida
acorda o passado.
Porquê, tão tardo, o passado?
Se ficou por saldar algo
com Deus ou com o Diabo
e se é o coração a saldo
porquê agora, Cobrança,
quando medo e esperança
se recolhem também sob
lembranças extenuadas?
Enche-se de novo o silêncio de vozes despertas,
e de poços, e de portas entreabertas,
e sonham no escuro
as coisas
acabadas.
Manuel António Pina
Friday, October 3, 2014
O atalho
Quando o Capuchinho Vermelho viu como os raios de
sol dançavam entre as árvores, e como havia lindas flores por todo o lado,
pensou: "Se eu levar à avó um ramo fresco, irei dar-lhe uma grande alegria."
Então, desviou-se do seu percurso e entrou no bosque à procura de mais flores.
E cada vez que apanhava uma, pensava que mais longe haveria outra correndo a
apanhá-la, de tal forma que penetrou cada vez mais na floresta. Só quando já
tinha tantas flores que não podia carregar mais é que o Capuchinho Vermelho se
lembrou da avó e retomou o caminho para sua casa.
Charles Perraut in O Capuchinho Vermelho
Thursday, October 2, 2014
Concerto
A obra de António
Pinto Vargas num espectáculo concebido e interpretado pelo próprio foi a
proposta que escolhemos para celebrar o dia mundial da música.
Wednesday, October 1, 2014
A música
Esta noite
vou servir um chá
Feito de
ervas e jasmim
E aromas que
não há
Vou chamar a
música
Encontrar à
flor de mim
Um poema de
cetim
Rosa Lobato de Faria
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