Guarda tu agora o que eu, subitamente,
perdi
talvez para sempre - a casa e o cheiro dos
livros,
a suave respiração do tempo, palavras, a
verdade,
camas desfeitas algures pela manhã,
o abrigo de um corpo agitado no seu sono.
Guarda-o
serenamente e sem pressa, como eu nunca
soube.
E protege-o de todos os invernos - dos
caminhos
de lama e das vozes mais frias. Afaga-lhe
as feridas devagar, com as mãos e os
lábios,
para que jamais sangrem. E ouve, de noite,
a sua respiração cálida e ofegante
no compasso dos sonhos, que é onde se
esconde
os mais escondidos medos e anseios.
Não deixes nunca que se ouça sozinho no
que diz
antes de adormecer. E depois aguarda que,
na escuridão do quarto, seja ele a
abraçar-te,
ainda que não te tenha revelado uma só vez
que o queria.
Acorda mais cedo e demora-te a olhá-lo à
luz azul
que os dias trazem à casa quando são
tranquilos.
E nada lhe peças de manhã - as manhãs
pertencem-lhe;
deixa-o a regar os vasos na varanda e sai,
atravessa a rua enquanto ainda houver sol.
E assim
haverá sempre sol e para sempre o terás,
como para sempre o terei perdido eu,
subitamente,
por assim não ter feito.
Maria do Rosário Pedreira in a casa e o cheiro os livros - gótica 2002
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