Saturday, October 31, 2015

Thursday, October 29, 2015

Um breve momento

O Paraíso não é um lugar mas um breve momento que conquistamos dentro de nós.

Mia Couto

Wednesday, October 28, 2015

Escolha afectiva


Tuesday, October 27, 2015

O longo apelo

Não fora o mar, 
e eu seria feliz na minha rua, 
neste primeiro andar da minha casa 
a ver, de dia, o sol, de noite 
a lua, calada, quieta, sem um golpe de asa. 

Não fora o mar, 
e seriam contados os meus passos, 
tantos para viver, para morrer, 
tantos os movimentos dos meus braços, 
pequena angústia, pequeno prazer. 

Não fora o mar, 
e os seus sonhos seriam sem violência 
como irisadas bolas de sabão, 
efémero cristal, branca aparência, 
e o resto — pingos de água em minha mão. 

Não fora o mar, 
e este cruel desejo de aventura 
seria vaga música ao sol pôr 
nem sequer brasa viva, queimadura, 
pouco mais que o perfume duma flor. 

Não fora o mar 
e o longo apelo, o canto da sereia, 
apenas ilusão, miragem, 
breve canção, passo breve na areia, 
desejo balbuciante de viagem. 

Não fora o mar 
e, resignada, em vez de olhar os astros 
tudo o que é alto, inacessível, fundo, 
cimos, castelos, torres, nuvens, mastros, 
iria de olhos baixos pelo mundo. 

Não fora o mar 
e o meu canto seria flor e mel, 
asa de borboleta, rouxinol, 
e não rude halali, garra cruel, 
Águia Real que desafia o sol. 

Não fora o mar 
e este potro selvagem, sem arção, 
crinas ao vento, com arreio, 
meu altivo, indomável coração, 

Não fora o mar 
e comeria à mão, 
não fora o mar 
e aceitaria o freio. 

Fernanda de Castro in «Trinta e Nove Poemas», 1941

Monday, October 26, 2015

Em curso

Quando drasticamente tudo muda, o exercício parece, à partida, bastante difícil. A morte anunciada condenava-o à queda e obrigava a um tempo de viragem, em território, ainda por explorar. Embora as interpretações demonstrassem que tudo seria justificável o espectro da conjuntura mudava e, finalmente, entrava em algo real e muito concreto. As motivações eram fortes e o esforço de negociações positivo, abrindo-se uma porta que não voltaria a fechar. É nessa altura que o futuro se torna inevitável. 

Sunday, October 25, 2015

A escolha

Que linda falua
Que lá vem, lá vem!
É uma falua
Que vem de Belém.

Vou pedir ao senhor barqueiro
Quem me deixe passar
Tenho filhos pequeninos
Que não posso sustentar.

Passará, passará
Mas algum ficará
Se não for a mãe da frente
É o filho lá de trás.

Saturday, October 24, 2015

Thursday, October 22, 2015

A cabeça

A teoria era esta: arrasar tudo — mas alguém pegou
na máquina de filmar e pôs em gravitação uma cabeça recolhendo-a
de um lado e descrevendo-a de outro lado num sulco
vibrante «parecia um meteoro»
como se fosse muito simples e então a cabeça desaparecia «a lua»
a ferver a grande velocidade pelo céu dentro
«um buraco»
via-se apenas a intensidade «estávamos com medo pois aquilo
assemelhava-se a uma revelação» e foi quando ele apanhou a cabeça
outra vez
e era agora uma cabeça furiosa
«cheia de peso» dizia-se «a luz agarra qualquer coisa»
oh sim: «com toda a violência»
pensai num bocado de carne despedaçado entre as mandíbulas
de um tigre: e depois deixou cair esse rosto sustentado atrás
pela bela caixa craniana com aquele rastro de cometa
«que é isto?» perguntou-se — e pusemo-nos todos a pensar bastante
«havia ali um senso arcaico da paixão»
talvez uma coisa tão remota e bárbara como: o fausto:
o pavor:
a caça: «é um movimento uma forma» disse ele
«é preciso voltar ao princípio»
e então começámos a usar os olhos com a ferocidade das objectivas
sem truques capturando tudo selvaticamente
e havia por vezes a vertente das espáduas desalojadas
um caudal sumptuoso
cortado «era tão estranho!» pela ligeireza dos dedos abertos
delicado pentagrama a duas alturas
«uma estrela refractada» para falar do que se viu
na projecção do filme e então podia-se adiar tudo menos aquela ideia
de que «não digo beleza» de que uma força
impelia tudo e a rapidez criava formas
linhas de translação feixes
de desenvolvimento ao longo das paisagens redondas como
abismos
recorria-se ainda a imagens para devolver essa cabeça
ao fulgor da sua precipitação contra os olhos
a queda «como oxigénio a arder» e a fuga
e a correria em que voltava para subir e rodar
de um modo que dizíamos: «indomavelmente»
porque vistas assim as coisas eram de uma fatalidade total
e a irrevogável maneira que tinham de ser livres
soltas
impunes
— na sua firmeza: «inocentes» — isso fazia medo
e havia em nós «um estilo de ver» que nos arrastava
implacavelmente para a loucura e a alegria
«porque era preciso destruir tudo» sim «de extremo a extremo»
para encontrar «o centro» onde o calcanhar gira
e roda o corpo todo
o sítio talvez onde se formam as massas dos espelhos
de que saltam fortemente «os astros os rostos»
e não haver «exemplo» mas apenas uma forma rudimentar
desfechada
contra tudo aqui escavando achado o veio
a limpidez primeiramente: aquilo: a cabeça móvel apanhada


Herberto Helder in A Faca não Corta o Fogo



Wednesday, October 21, 2015

O vento leve

Leve, leve, muito leve,
Um vento muito leve passa,
E vai-se, sempre muito leve.
E eu não sei o que penso
Nem procuro sabê-lo.

 Alberto Caeiro in O guardador de rebanhos

Tuesday, October 20, 2015

É tempo ainda

Ama-me. É tempo ainda. Interroga-me.
E eu te direi que o nosso tempo é agora.
Esplêndida altivez, vasta ventura
Porque é mais vasto o sonho que elabora
Há tanto tempo sua própria tessitura.

Ama-me. Embora eu te pareça
Demasiado intensa. E de aspereza.
E transitória se tu me repensas.



Hilda Hilst

Monday, October 19, 2015

Pouco

Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.


Clarice Lispector

Sunday, October 18, 2015

Recolhimento


Saturday, October 17, 2015

Episódios

Sopro a sopro, luz e reflexo iam-se desencadeando numa série de acções, num enquadramento capaz de lhe iluminar os dias. Leves, ténues, inesgotáveis e desprovidos de qualquer espessura num espaço que mais parecia sem fim.

Friday, October 16, 2015

Distanciamento

Onde não puderes amar, não te demores.

Frida Kahlo

Thursday, October 15, 2015

Nunca partiram

Os amigos não morrem: andam por aí, entram por nós dentro quando menos se espera e então tudo muda: desarrumam o passado, desarrumam o presente, instalam-se com um sorriso num canto nosso e é como se nunca tivessem partido. É como, não: nunca partiram.


António Lobo Antunes in Visão

Wednesday, October 14, 2015

A separação

Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém.


Álvaro de Campos

Tuesday, October 13, 2015

Monday, October 12, 2015

Outubro


De amor nada mais resta que um Outubro 
e quanto mais amada mais desisto: 
quanto mais tu me despes mais me cubro 
e quanto mais me escondo mais me avisto. 

Natália Correia

Saturday, October 10, 2015

Noite de Jazz



Friday, October 9, 2015

Não há

Não há estrada que te leve onde não queiras ir.

Tristão de Andrade

Thursday, October 8, 2015

Os jogos de sobrevivência

Os tempos eram difíceis e instáveis e a realidade, por vezes, obrigava-os a recuar. O mais importante era dar esperança para que as coisas pudessem mudar. Encontrar formas de entendimento e consensos sem perder a capacidade negocial, levava-os a escancarar todas as portas. Dentro dos cenários possíveis só um acordo sustentável, eventualmente, os poderia salvar.

Wednesday, October 7, 2015

Tuesday, October 6, 2015

A outra verdade

O poema é um exercício de dissidência, uma profissão de incredulidade na omnipotência do visível, do estável, do apreendido. O poema é uma forma de apostasia. Não há poema verdadeiro que não torne o sujeito um foragido. O poema obriga a pernoitar na solidão dos bosques, em campos nevados, por orlas intactas. Que outra verdade existe no mundo para lá daquela que não pertence a este mundo? O poema não busca o inexprimível: não há piedoso que, na agitação da sua piedade, não o procure. O poema devolve o inexprimível. O poema não alcança aquela pureza que fascina o mundo. O poema abraça precisamente aquela impureza que o mundo repudia.

José Tolentino Mendonça


Monday, October 5, 2015

Passa por aí

«O lobo será sempre mau se apenas ouvirmos a versão do capuchinho vermelho»

Sunday, October 4, 2015

A reflexão

Na véspera optou por não reflectir e saiu de casa para ir dançar. O local não era nem de perto nem de longe um dos seus preferidos mas para o caso servia para lhe aclarar as ideias. Encontrava-se apinhado de alemães, de classe média baixa, duma geração para além da sua. A música era ao vivo, por parte de um elemento masculino que donde ela estava não dava para enxergar e três mulheres que trajavam mini vestidos pretos e botas um pouco acima do joelho. Cantavam demasiado alto e em alemão versões dos Abba e do Lionel Richie que todo o mundo parecia saber de cor e ao contrário dela, apreciar. No bar não havia mãos a medir para saciar tanta sede, motivada pela inclusão das bebidas com o entretenimento de cada uma das noites da estadia de toda aquela gente. Parte da sua visão resumia-se à exiguidade do espaço e à falta de reconhecimento em quem votar no dia seguinte. Afinal a política é feita por todos os que a fazem mas sem quaisquer garantias.

Saturday, October 3, 2015

Um lado de tudo

É a solidão
o que o coração procura,
como poderei não
saber o que não sei?

Estou cada vez mais longe de qualquer coisa,
regressarei alguma vez
a tudo o que há-de vir?
O que está atrás de ti

e a tua imagem
que o Futuro persegue.
Este é um lado de tudo
e o outro é o mesmo e o outro.


Manuel António Pina in Aquele que quer morrer, 1978 - Poesia Reunida, Assírio & Alvim, 2001

Friday, October 2, 2015

Metamorfoses


Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses.


Rubem Alves

Thursday, October 1, 2015

Uma cena de pontas