De súbito
extinguiu-se qualquer coisa,
soltou-se
qualquer peça de uma máquina incompreensível
de que
dependia, afinal, a minha vida;
tornou-se
tudo demasiadamente literal,
até eu estar
ali, sem compreender;
e até eu não
compreender parecia
algo
inteiramente incompreensível;
o mundo, que
via pela primeira vez,
via-o
através de uns olhos que não me pertenciam,
que não
pertenciam, porque eu próprio era
um
acontecimento incompreensível acontecendo,
algo que me
acontecia não sabia a quem;
o comboio
afastava-se levando-te
para fora de
mim como alguém sonhando,
e eu e tudo
o que de mim sabia desaparecera
e ficara um
sítio vazio
onde as
últimas horas da tarde
como aves
extenuadas pousavam.
Manuel António Pina in Atropelamento e Fuga - 2001
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