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Tuesday, March 21, 2017

Nada mais

nada pode ser mais complexo que um poema,
 organismo superlativo absoluto vivo,
 apenas com palavras,
 apenas com palavras despropositadas,
 movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes,
 nada mais que isso,
 música,
 e o silêncio por ela fora


Herberto Helder

Friday, February 3, 2017

Tu

Sempre que penso em ti danço até à ressurreição do tempo.

Herberto Helder

Thursday, July 14, 2016

O urdir do tempo

Ela é a fonte. Eu posso saber que é
a grande fonte
em que todos pensaram. Quando no campo
se procurava o trevo, ou em silêncio
se esperava a noite,
ou se ouvia algures na paz da terra
o urdir do tempo 
cada um pensava na fonte. Era um manar
secreto e pacífico.
Uma coisa milagrosa que acontecia
ocultamente.

Ninguém falava dela, porque
era imensa. Mas todos a sabiam
como a teta. Como o odre.
Algo sorria dentro de nós.

Minhas irmãs faziam-se mulheres
suavemente. Meu pai lia.
Sorria dentro de mim uma aceitação
do trevo, uma descoberta muito casta.
Era a fonte.

Eu amava-a dolorosa e tranquilamente.
A lua formava-se
com uma ponta subtil de ferocidade,
e a maçã tomava um princípio
de esplendor.

Hoje o sexo desenhou-se. O pensamento
perdeu-se e renasceu.
Hoje sei permanentemente que ela
é a fonte.


                Herberto Helder

Wednesday, March 23, 2016

O desejo

"Não tenho nenhuma lei nem regra
 para desordenar um poema escrito
 não tenho mais que o desejo de tocar-te
 ó coisa inúmera que entretanto
 além de tocar
 conto e reconto
 continuadamente"

 Herberto Helder in Letra Aberta (25.11.1930 - 23.03.2015)


Monday, March 14, 2016

A eternidade das mãos

Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira
e a eternidade das mãos.
Esta linguagem é colocada e extrema e cobre, com suas
lâmpadas, todas as coisas.
As coisas que são uma só no plural dos nomes.
─  E nós estamos dentro, subtis, e tensos
na música.


Esta linguagem era o disposto verão das musas,
o meu único verão.
A profundidade das águas onde uma mulher
mergulha os dedos, e morre.
Onde ela ressuscita indefinidamente.
─  Porque uma mulher toma-me
em suas mãos livres e faz de mim
um dardo que atira. - Sou amado,
multiplicado, difundido. Estou secreto, secreto -
e doado às coisas mínimas.


Na treva de uma carne batida como um búzio
pelas cítaras, sou uma onda.
Escorre minha vida imemorial pelos meandros
cegos. Sou esperado contra essas veias soturnas, no meio
dos ossos quentes. Dizem o meu nome: Torre.
E de repente eu sou uma torre queimada
pelos relâmpagos. Dizem: ele é uma palavra.
E chega o verão, e eu sou exactamente uma Palavra.
─  Porque me amam até se despedaçarem todas as portas,
e por detrás de tudo, num lugar muito puro,
todas as coisas se unirem numa espécie de forte silêncio.


Essa mulher cercou-me com duas mãos.
Vou entrando no seu tempo com essa cor de sangue,
acendo-lhe as falangetas,
faço um ruído tombado na harmonia das vísceras.
Seu rosto indica que vou brilhar perpetuamente.
Sou eterno, amado, análogo.
Destruo as coisas.


Toda a água descendo é fria, fria.
Os veios que escorrem são a imensa lembrança.  Os velozes
sóis que se quebram entre os dedos,
as pedras caídas sobre as partes mais trémulas
da carne,
tudo o que é húmido, e quente, e fecundo,
e terrivelmente belo
─  não é nada que se diga com um nome.
Sou eu, uma ardente confusão de estrela e musgo.


E eu, que levo uma cegueira completa e perfeita, acendo
lírio a lírio todo o sangue interior,
e a vida que se toca de uma escoada
recordação.


Toda a juventude é vingativa.
Deita-se, adormece, sonha alto as coisas da loucura.
Um dia acorda com toda a ciência, e canta
ou o mês antigo dos mitos, ou a cor que sobe
pelos frutos,
ou a lenta iluminação da morte como espírito
nas paisagens de uma inspiração.
A mulher pega nessa pedra tão jovem,
e atira-a para o espaço.
Sou amado. - E é uma pedra celeste.


Há gente assim, tão pura. Recolhe-se com a candeia
de uma pessoa. Pensa, esgota-se, nutre-se
desse quente silêncio.
Há gente que se apossa da loucura, e morre, e vive.
Depois levanta-se com os olhos imensos
e incendeia as casas, grita abertamente as giestas,
aniquila o mundo com o seu silêncio apaixonado.
Amam-me, multiplicam-me.
Só assim eu sou eterno.


Herberto Helder in poesia toda - assírio & alvim
1996

Thursday, March 3, 2016

De que sítio é a primavera?

fico indiferente a vê-los gostar de poemas meus da juventude,
poemas tão inconscientes de si quando se coloca a mão
numa fruta, num livro encadernado,
e estranho, que passem rápido sobre a ferida ainda aberta,
ou não sintam a rispidez com que se fecha o dia
ao voltar a página
sob a noite afogando casas, pessoas, todos os livros do mundo,
e já declina a beleza completamente despida
da jovem ateniense que abriu a porta e traz a luz ao quarto inteiro
                                                                                             de uma só vez,
mas deixa que se suspeite a treva infinda de onde chega,
ávida fêmea de que equívoca temperatura,
de perguntas como: que idade tem a terra?
em que data de que sítio é a primavera?
ou: este arrepio nas unhas anuncia que morre de que coisas?
(alguém algures assobia uma canção em voga)
¿e que terror é este saber que há tanta vida
neste dia em que decerto, entre ruído e silêncio cada vez mais fundo,
alguém sente que a ferida lateja,
e há numa página do livro
 – aguda, obscura, ofuscante –
uma dedada de sangue?


Herberto Helder


Sunday, January 3, 2016

Quem se assenta à nossa mesa?

A palavra erguia-se como um candelabro,
a voz ardia como um inesperado campo de giestas.
E nós sustínhamos em nossos dois ombros o fulgor
e a tristeza divina. Quando os arbustos
eram bichos iluminando as regiões do céu e ao rés
da terra as pedras cantavam e os mitos davam
a forma das coisas.
Quando colhíamos o espanto nas mãos dolorosas
e em frente ao povo íamos cantando
a fábula e o próprio rosto do milagre.
Quem se assenta à nossa mesa? — dizíamos. — Quem
sobre a mesa coloca um beijo sem peso e sem mácula?

Nada existe que não seja inocente, e o hálito
perpassa à flor dos lábios,
a força da memória deu a alma ao vinho e o imponderável
ao primeiro sorriso. Toda a casa
acaba a noite, cria a auréola
em torno do objecto, enche cada instante
de um poder obscuro.
A delicada taça partia-se nas mãos — sangue:
um sinal, um símbolo. E cantar
era conceber uma estrela, um testemunho da mais alta
loucura. Cantar era uma razão
de morte e de alegria.

Desfaziam-se as pálpebras na jovem carne, na esfera
da luz, ou na ressonância e volúpia
do tempo. E a mão procurava o punhal,
a boca beijava a laje nua. Do braço divino
sumia-se o fogo e o archote corria sobre as águas
ou no coração da sementeira.

E era então o fogo aquilo a que o beijo,
em sua graça, firmemente aspirava.
Nenhuma vida tanto se gastou
que não seja visitada, nenhum deus
é tão grande que se não perca na substância
da sombra. — Uma flor e um grito,
um copo e um breve minuto, ou a aurora
cortando o peito, ou o primeiro respirar
de um pensamento.

Cantar onde a mão nos tocou,
o ombro se acendeu, onde se abriu o desejo.
Cantar na mesa, na árvore
sorvida pelo êxtase.
Cantar sobre o corpo da morte, pedra
a pedra, chama a chama — erguido,
                                                            amado,
                                                                          aprendido.




Herberto Helder in poesia toda - assírio & alvim 1996

Wednesday, November 18, 2015

Nas ogivas da noite

- Onde aguardas por mim, espécie de ar transparente
para levantar as mãos? onde te pões sobre a minha palavra,
espécie de boca recolhida no começo?
E é tão certo o dia que se elabora.
Então eu beijo, degrau a degrau, a escadaria daquele corpo.
E não chames por mim,
pensamento agachado nas ogivas da noite.


Herberto Helder

Wednesday, September 23, 2015

A escadaria

Então eu beijo, degrau a degrau, a escadaria daquele corpo.

Herberto Helder

Monday, August 3, 2015

A busca

eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Herberto Helder

Tuesday, May 26, 2015

Como se uma nuvem viesse

E maio empregara-se nos jardins com uma velocidade ao pé do esplendor, e tu escrevias errado que não chegara a ser branco, e uma máquina esquecia-se e aparecia o paraíso azul numa parte e amarelo, e as estátuas diziam sempre a minha lembrança da luz, e voltavam-se para a esquerda e para a direita à procura dos perfis, e a tua blusa fremia como se uma nuvem viesse por baixo, e era tudo um instante em redor do exercício cândido, e as mãos ocupavam-se em ter dedos - era maio: afluente do desejo, bom-dia eu estou nu, bom-dia eu estou nua, e o sol tirava o retrato de corpo inteiro, e de repente havia um grito narrativo, e a noite ia de um lado para o outro na voz espantosa de crianças completamente obscuras, e o perfume aterrador do sangue trabalhava na sua voz estrangeira, e as colinas afastavam-se para dar passagem à nossa ausência tremendo de febre - depressa - dizia uma magnólia cega, e o radar indicava os passos queimados em volta do êxtase, e a imprensa redigia a morte entre parênteses distraídos, e virando de leve a cabeça um para o outro não havia auréolas, e partíamos para a virgindade com a vocação de um crime, e já íamos dormindo e sonhando com os pulmões a ferver.


Herberto Helder in Vocação Animal - Lisboa: Publicações D. Quixote, Maio de 1971

Monday, April 6, 2015

É primavera

É primavera. Arde além rodeada pelo sal,
por inúmeras laranjas.
Hoje descubro as grandes razões da loucura,
os dias que nunca se cortarão como hastes sazonadas.
Há lugares onde esperar a primavera
como tendo na alma o corpo todo nu.
Apagaram-se as luzes: é o tempo sôfrego
que principia. - É preciso cantar como se alguém
soubesse como cantar.


Herberto Helder in «A Colher na Boca», 1961

Monday, March 30, 2015

Círculo de pétalas

Apagaram-se as luzes. É a primavera cercada
pelas vozes.
Enquanto dorme o leite, a minha casa
pousa no silêncio e arde pouco a pouco.
No círculo de pétalas veementes cai a cabeça -
e as palavras nascem.
                                            - Límpidas, amargas.

Herberto Helder