Friday, April 29, 2011

Coreografia de poses










Erguem-se ligeiramente, em círculo ou em linha recta, ocupando o centro, afastando-se e retomando a forma e o lugar. Traços incompletos em superfícies aéreas, sustentando poses indefinidas em movimentos graciosos e lentos. Pendurados, sobrepostos, dotados de uma energia própria, desenham sombras em simetria, cumprindo distâncias que exigem um equilíbrio maior. Completa a volta em perfeição, eis que escorregam, giram, se elevam para além da vista, alongando e subindo, em direcção aos céus. E, em delírio, plantas e folhagens, dançam juntos, a compasso da brisa primaveril, indiferentes à minha passagem.

Monday, April 25, 2011

O sinal


Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei
Em teu corpo, amor
Eu adormeci
Morri nele
E ao morrer
Renasci



José Niza (1974)

Sunday, April 24, 2011

Olhares renovados

Ao raiar de um novo dia – a esperança! É nessa frequência que bebo a poesia dos campos, disponível para escutar e sentir a fragrância a alfazema. Extensão incompleta e infinita, quando a realidade é menos persuasiva do que é imperceptível e me abrange. Feliz e abençoada Páscoa para todos!

Wednesday, April 20, 2011

Desabrigada







De súbito
sucedem-se em cadência
a partir do momento
e no lugar
em que deslizam
gota a gota
e tocam todas as flores lilases
inundando os campos
estendendo-se ao universo
sem ponto de fuga

Sunday, April 17, 2011

O caos




O mundo está nas imediações do

nada,

a desordem

é um prenúncio,

e o inferno torna-se indispensável

em certas semanas

monótonas.


Gonçalo M. Tavares - Uma Viagem à Índia, Editorial Caminho, 2010

Saturday, April 16, 2011

Do outro lado


Porque o presente não nos satisfaz, e o sol parece não brilhar com tanta intensidade, paira no ar aquela sensação de que alguma coisa nos falta por mais indefinida que seja. Teimosamente, à espera de melhores dias, muitas vezes, alimentamos a utopia e o desejo vão que, do lado de lá, fora dos nossos limites, a paisagem será mais fértil levando-nos a crer que imaginamos o que na realidade não existe

Monday, April 11, 2011

Meta inatingível




Cada instante de mudança precipita o dia na noite. Tento aproximar-me, vencendo a distância, impelida a sair de mim própria. Mas, independentemente do avanço que faço na direcção do pôr-do-sol, apenas me acerco sem nunca o atingir. Fora do meu alcance, como se não houvesse limite algum, o fim estará sempre ligado ao infinito, e se lá chegasse, o mais certo seria descobrir outro pôr-do-sol.

Friday, April 8, 2011

O poder do silêncio



Num tempo cada vez mais agitado, onde o estado actual das coisas tem mais a ver com o ego, do que com outra realidade qualquer, aprender a governar-nos com o objectivo de combater situações menos boas, foi o que fomos conhecer, neste final de tarde, na Biblioteca Lídia Jorge. Afinal, num momento como o que vivemos, o silêncio nos pode reconfortar conduzindo-nos em direcção à paz, ao amor e à felicidade do dia a dia. E, ao concentrarmo-nos em pensamentos úteis, e energias positivas, progressivamente, tomamos consciência dos verdadeiros valores da nossa própria essência. Quando regressamos à origem, voltamos ao ponto de partida, em contínua descoberta do que vai dentro do coração de cada um.

Thursday, April 7, 2011

Flores abertas


Só as tuas mãos trazem os frutos.

Só elas despem a mágoa

destes olhos, choupos meus,

carregados de sombra e rasos de água.


Só elas são estrelas penduradas nos meus dedos.

- Ó mãos da minha alma,

flores abertas aos meus segredos


Eugénio de Andrade



Wednesday, April 6, 2011

Telhados de Abril


Na hora do balanço do que fomos e fizemos, ninguém, verdadeiramente, consegue sair deste círculo. A crise abala o mundo, e abala-nos particularmente a nós. Destituídos de iniciativa, caídos em descrédito e desmoralizados, tentamos escapar-lhe em vão, prisioneiros duma situação que, afecta o fluir dos dias e cada aspecto das nossas vidas. Ainda que insustentável do ponto de vista económico, nada está perdido, e que ninguém deixe nunca de sonhar.

Monday, April 4, 2011

Abrir caminho










A cada passo balanceio entre malmequeres de reflexos luminosos que, me acompanham nas deambulações da mente. Murmuram-me palavras que, mal oiço, e velozmente desfalecem numa linguagem que, ultrapassa a própria finitude humana. A reconstituição de um percurso a branco e amarelo dourado ganha novos sentidos, desenhando contornos que transpõem a imaginação. Bem me quer, mal me quer, intensamente sensorial.

Friday, April 1, 2011

Inexactidão


A intencionalidade define-a, por assim dizer. Pode ter várias versões, mas a mentira quase sempre magoa. Quando alguém não nos olha nos olhos e nos ilude levando-nos ao engano, não só distorce a realidade que, aos poucos se esvai, como nos nega a verdade a que temos direito.

Thursday, March 31, 2011

O muro


A mão preferida pelo silêncio

evoca sobre o muro

um alfabeto sem vincos

não é mão é uma luz que sobe pela colina

um atalho entre as estevas

um incêndio na mata

a rapariga louca, grita contra a noite

na enseada


A mão preferida pelo silêncio

folheia o livro dos incêndios torna-se irremediavelmente suja

sobre o muro traça os vincos

os primeiros versos


A mão preferida pelo silêncio

não conhece repouso

quando atravessa a noite da enseada

é a mão trémula

pobre

assinalada pela escassez extrema dos nomes


José Tolentino de Mendonça in de Longe Não Sabia(1997)

Wednesday, March 30, 2011

A vastidão






Num espaço sem fim, há percursos irrepetíveis que, me parecem uma ilusão. Percorro terrenos pedregosos, por entre figueiras distintas, ritualizando a passagem que me distancia do mundo, e me devolve a alma. No meu caminho incerto, elas são as testemunhas do rumo que me sustenta a vida.

Sunday, March 27, 2011

Papel principal


Desenvolvem a personagem e, conduzem a trama em toda a sua forma de acção. Indo além das aparências, criam uma ligação emocional no que mais íntimo e pessoal existe dentro deles. É o tempo que, acompanha os acontecimentos do enredo, pontuado por diversos actos que permitem aos actores a sua expressão mais genuína. Em termos artísticos a linguagem está presente como o mais útil dos instrumentos, num processo de construção que, por vezes, confunde o ilusório com o real.

Saturday, March 26, 2011

Paz absoluta

Num primeiro momento, um olhar mais atento permite-me perceber como tudo o que me envolve, contribui para o equilíbrio e leveza de espírito. A manhã crescia, e como uma borboleta esvoacei de flor em flor, das cores e feitios mais arrojados. Acabadas de chegar, aqui e além, pela mão da primavera tal como as havia projectado umas semanas antes, exaltantes de vida apesar de efémeras.

Wednesday, March 23, 2011

Faz de conta

Um PS e um PSD que discutiam a posse de um Povo submeteram o caso ao julgamento de um FMI. Este, depois de ouvir uma longa argumentação, abriu a boca para proferir a sentença.

- Já sei qual vai ser a decisão – interrompeu o PSD. – Devido ao nosso fraco desempenho, o Povo não pertence a nenhum dos dois e serás tu mesmo a comê-lo. Permite-me que te diga que é uma decisão injusta, como provarei.

- Para mim – disse o PS – está claro que darás o Povo ao PSD, o PSD a mim e que tu ficas comigo. Já tenho experiência destas coisas.

- O que eu ia a dizer – disse o FMI, bocejando – é que, durante a argumentação deste caso, a propriedade em disputa pôs-se a andar. Talvez consigam arranjar outro Povo.


Nota: Inspirado numa fábula de Esopo - post in
http://livrariapodoslivros.blogspot.com/

Monday, March 21, 2011

Projecções contíguas


Na passagem do tempo, existe entre a despedida do inverno e o despertar de um novo ciclo uma acelerada transformação. Silenciosa e contemplativa, deixo-me inspirar pela natureza que pulsa em uníssono, quando a minha relação com o mundo se alarga para algo maior.

Thursday, March 17, 2011

Teorema

Criança à beira do ar. Caminha pelas cores prodigiosas, iluminações da água, esmeraldas
exasperadas, as púrpuras. E entra na clareira. Passa,
toda. Está coberta de pólen.
A convulsão de uma jóia quando roda
abruptamente acesa. A cicatriz do tórax é uma
arborescéncia
a sangue e ouro.
Nela se embebedam os enxames das
imagens
estelares, vermelhas,
extremas.
Os favos no escuro enlouquecem a infância.
Nas suas casas profundas Deus aguarda que se
demonstre
o teorema perfeito
e terrível.

Herberto Helder
"Última ciência" Poesia Toda