Thursday, November 11, 2010

Ao ar livre

O verde é a cor dominante da paisagem. A ela mistura-se os grandes rochedos, as árvores seculares, o som das fontes de águas límpidas, e o canto das aves. Em Monchique, o ar é puro, e respira-se uma absoluta tranquilidade. Avanço para Fóia – o ponto mais elevado do Algarve, e à distância, descubro o mundo que me cerca, saboreando-o com todo o vagar. De um vasto horizonte de mar e serra, é sempre possível ver mais longe, e beijar o céu.

Wednesday, November 10, 2010

Ideia de espaço

Voam à descoberta, concentrando a atenção nos traçados rectos e sinuosos em todo o seu redor. Os limites são-lhes indefinidos, e as nuvens espessas oferecem-lhes refúgio e evasão onde tudo é grande. Sobem colinas, viajam por campos de terra ressequida donde já nada brota, e deslizam pelos rios acima no mais fugaz dos instantes. Por fim, empoleiram-se no topo onde a vertigem é maior. E, quedos e silenciosos, suspensos no tempo em estado de perfeito equilíbrio, vão dando conta da poesia para além de si.

Monday, November 8, 2010

Retrato

Sempre que penso em ti estás a dançar levemente num clima de canela despenteada, ó aroma vagaroso, desordem aérea, mas a memória tem pressa, o sangue tem pressa interna, e antes de pensar tremo, e depois tremo, pelo meio desenvolve-se o pavor de uma beleza maiúscula, o coração corre entre iluminuras rápidas, é uma criança sucessiva nas pautas da música, assim escrevo uma nação simultânea, desapareces na respiração do teu vestido, entretanto a revelação anuncia-se pelo medo, curvas-te como as aldeias devoradas pela lua, mais tarde sempre que penso em ti estás com um lenço escrito nas duas mãos, e a tua velocidade abranda junto aos espelhos, expandes-te assim lentamente gravada, és uma floresta de silêncios visíveis, sempre que penso penso sempre ao contrário do fim, estás cada vez mais no princípio de ti mesma, então vejo que nesse lugar é o meu começo eterno, quando danças é um corpo rodeando a brancura rodeada ou de novo qualquer coisa criminal entre o cuidado e o espaço, nas linhas puras da solidão arde a cabeça, arde o vento, atrás de ti as imagens assassinas da noite - estrelas: subversão da noite, sempre que penso em ti danço até à ressurreição do tempo.

Herberto Helder, "Retrato em Movimento"/"Poesia Toda"

Sunday, November 7, 2010

Mudança de estações

Com os dias cada vez mais curtos, e a escurecer mais cedo, há uma tendência para se passar mais tempo em casa, após uma fase em que as actividades ao ar livre nos impeliam para o exterior. E, apesar da minha relação com o frio não ser de um total desconforto, nada, agora, me sabe melhor do que, me estender no sofá, debaixo de uma leve e suave manta de mohair, que me garante todo o bem-estar de que necessito.

Saturday, November 6, 2010

De rosa em rosa

Rosa em verso, rosa em prosa:
rosa rosa.
Verdadeira, recortada,
sempre votiva é a rosa.
Quem a dá, quem a ostenta,
quem a colhe, quem a inventa,
quem dela - a rosa - se lembra
faz o voto de quebrar
a pessoal solidão.
Se não troco o pão por rosas,
não troco a rosa por pão.
Rosa.
Rosa em verso, rosa em prosa:
rosa rosa.
Rosa nome, rosa coisa,
rosa flor, rosa rosa,
rosa traço de união.
Rosa fugaz, recolhida
noutra rosa já nascida.
De rosa em rosa é a vida.
Ó rosa breve fulgor,
lampejo na escuridão.
Se não troco o pão por rosas,
não troco a rosa por pão.

Alexandre O' Neill

Friday, November 5, 2010

A bela-luísa


Acabada de colher, o seu agradável sabor cítrico, serviu para nos reunirmos, sob o pretexto de um chá bela-luísa. Quando abre as portas de sua casa, ela aprimora, e é como se uma lufada de ar fresco nos invadisse as vidas. Da janela da cozinha, por onde tudo passa e acontece, avista-se um marmeleiro, a uma curta distância. Está carregado de frutos amarelados. Antecipo-lhes o perfume intenso quando maduros, deixando-me seduzir.
Na véspera, depois de os lavar, e cuidadosamente pôr a escorrer, um a um a Fátima descaroçou todos os marmelos, confeccionando uma geleia caseira, ao atingir o ponto desejado para a sua conservação. Um frasco foi-me logo reservado, e, por isso, eu aí estou de novo. Aquele lugar é o seu refúgio, e transmite o quanto ela é ali feliz. Com os dentes a romper, e uma ligeira infecção viral, o Pedro não abdicou de chorar, alertando-nos para a sua notoriedade na vida diária doméstica. Só o tempo liga tantas coisas valorizando cada momento.

Thursday, November 4, 2010

Visões

À primeira vista, dá-me a sentir, o quão longe pode ir o meu olhar. A transformação da paisagem, ganha significado à medida que o sol se põe, quando me aproprio de momentos que em vão tento adiar. Sucessivos movimentos, subtilmente esboçados no horizonte, ganham destaque na intensidade de um sonho.

Wednesday, November 3, 2010

Ao som do jazz

Vamos abrir a noite
Com música de Jazz
Vamos abrir a noite
Percorrê-la depois
num barco de borracha
Enforcar a memória
Celebrar o segredo
Descobrir de repente
Uma ilha que nasce dentro
do teu vestido
Chamar-lhe Madrugada
Adormecer contigo.

David Mourão-Ferreira

Monday, November 1, 2010

A supertaça




Eles posicionaram-se, saltaram, roubaram a bola, e fizeram passes e dribles. Ao encestarem, marcaram pontos, e ganharam! Atentos, os árbitros asseguraram as regras do jogo, e verificaram os descontos de tempo, já que uma vez interrompido, paralisa imediatamente. No encontro desta tarde, no pavilhão desportivo de Albufeira, o Benfica, que mais parecia estar a jogar em casa, levou a melhor, conquistando ao Porto o troféu da Supertaça.

Saturday, October 30, 2010

Noite dos diabos

Oiço-lhes as risadas e os gritos agudos, algures, na distância. No silêncio da noite, as suas vozes ressoam incontroláveis. Monstros e diabos passam-me pela frente, uns a seguir aos outros, como se fugissem deles próprios e de mim. A lua encontra-se negra pelo poder da escuridão. E, os espíritos andam à solta, assombrando-nos o território. Directamente da linha do horizonte, atravessam-me as paredes nas suas vassouras voadoras, debaixo de um tecto coberto de teias de aranha, com caveiras incrustadas, e espelhos reduzidos a estilhaços. Amaldiçoadas bruxas que, me causam repulsa, e me deixam o sangue gelar de pavor. Lívida, e de cabelo tão desgrenhado quanto elas, sigo-lhes o rasto através do seu canto fantasmagórico, para um banquete de manjares recheado das melhores iguarias ditadas pelo imaginário.

Wednesday, October 27, 2010

Seduzida pela luz

«Tarde. Olho pela última vez a brancura imaculada dos terraços com o céu todo de oiro em cima e deixo com saudade esta luz e esta terra embruxada.
Teria aqui uma casa numa das vielas fedorentas mais escusas. Para o exterior um muro sem uma janela, um muro velho, com um postigo mais velho ainda para entrar. Aberta a porta, seria um deslumbramento: no pátio caiado, só luz e folhas gordas, da variedade dos cactos que dão flor vermelha, humedecidas de água sempre a escorrer. Teria duas escravas para me servirem frutos translúcidos acabados de apanhar.
Teria um barco para o contrabando nos mercados de Gibraltar e Marrocos, satisfazendo assim os meus velhos instintos de pirata. E de noite, a este luar que tem não sei o quê de mulher, de pele de mulher, de seios duros e brancos de mulher, dormiria na soteia sob as estrelas, grandes como fogachos.
Era viver num meio adormecimento, seduzido pela luz, fora de todos os interesses e realidades, em Portugal e no Sonho...»

Raul Brandão - Agosto de 1922

Tuesday, October 26, 2010

Em primeiro plano

Convergindo para o infinito, levanto voo um pouco tensa e um tanto assustada. Não existem barreiras neste exercício de perspectiva que, me oferece a oportunidade de evasão. Perdida no espaço, ascendo às alturas sobre as ondas dum mar que se agita, quando progressivamente tudo diminui de tamanho, tornando-se levemente distorcido. O horizonte parece-me agora bem mais longínquo. É aí, que atenta ao momento me desligo do mundo fora do meu alcance, e ganho uma outra percepção da realidade superando todos os limites.

Friday, October 22, 2010

Caso perdido

Não se lhe pode escapar. A crise anda por todo o lado. Precisamos desesperadamente de esperança, quando a miséria, o desespero, e tanta angústia nos oprimem o espírito, e nos parecem conduzir à derrota e humilhação. De pesadelo em pesadelo, continuamos a caminhada presos ao infortúnio, em torno de um destino inteiramente amaldiçoado. Será que o universo não tem simpatia por nós? As boas notícias remetem-se a um mero cantinho, continuamos a influenciarmo-nos negativamente, e deixamos os sorrisos desvanecerem-se, sem saber bem o que fazer. E, quando a suspeita se instala, e se duvida das palavras, e ninguém deseja ouvir mais a verdade, ou pelo menos tanta certeza, aceitamos a ilusão transformando-a em realidade. Dia após dia, vive-se na expectativa de que as coisas poderão piorar, e consequentemente tudo se torna ainda mais dramático. Emocionalmente abalados, e com tantos sonhos ainda por realizar, se optarmos por viver a vida com inspiração e coragem em vez de temor, redefiniríamos uma certa normalidade, em vez de nos aniquilarmos consumidos pela nossa própria dor. Rumando noutras direcções, investiríamos na mudança que tanto tarda em romper.

Wednesday, October 20, 2010

Mistério e magia

As fadas... eu acredito nelas!
Umas são moças e belas,
Outras velhas de pasmar...
Umas vivem nos rochedos
Outras pelos arvoredos,
Outras, à beira do mar...

Umas têm mando nos ares;
Outras, na terra, nos mares;
E todas trazem na mão
Aquela vara formosa,
A vara maravilhosa,
A varinha de condão.

Quantas vezes, já deitado,
Mas sem sono, inda acordado,
Me ponho a considerar.
Que condão eu pediria,
Se uma fada, um belo dia,
Me quisesse a mim fadar...

Antero de Quental

Tuesday, October 19, 2010

Cantos da casa

Percorre-me todo o comprimento da parede frente ao sofá. Não foge ao convencional, tratando-se apenas de um nicho lacado em tom marfim pálido, onde mantenho em perspectiva uma série de objectos carregados de recordações. Alguns ficam bem lado a lado, outros, apesar do desalinho, expostos em conjunto parecem adquirir um sentido de unidade. Uma ou duas peças foram colocadas estrategicamente, quando nos meses mais quentes, o sol me entra pela sala adentro reflectindo a luz e fazendo-os brilhar! Ao sabor dos dias, fixo-os e ajusto-lhes a disposição com exacta precisão, assumindo particular significado, num espaço onde o branco impera, e o tempo me liga a tantas coisas vividas de forma intensa.

Saturday, October 16, 2010

Sessão de apresentação

Numa incursão às suas múltiplas vivências como delegado de informação médica, pelos quatro cantos do mundo - Nídio Duarte deixa-se influenciar por cada um desses lugares, e reconstrói através de imagens ficcionadas o livro da sua própria experiência pessoal.
A apresentação de «Multinacionais – Histórias de um Vendedor» que, teve esta tarde lugar na Biblioteca Lídia Jorge, articulou com momentos musicais verdadeiramente inspiradores com o hábil desempenho do guitarrista peruano Juan Carlos León, ilustre professor da Academia de Música de Lagos.

Tuesday, October 5, 2010

Cem anos depois


No ano em que se celebrou o fim do regime monárquico, uma imensidão de iniciativas teve lugar desde exposições, livros, catálogos e todo o tipo de programação pedagógica, que levou o país inteiro a reflectir os ideais do republicanismo. Neste encontro com a História, fui assistir a um recital de poesia apadrinhado por Afonso Dias, onde histórias e poemas se cruzaram, conduzindo-nos a uma nova visão para Portugal.

Thursday, September 30, 2010

Revisitada

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...

Álvaro de Campos in Lisbon Revisited (1926)

Thursday, September 16, 2010

O rebanho

Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.


Alberto Caeiro,
in O Guardador de Rebanhos