A persistência do olhar ajudava-a a
reconfigurar memórias num permanente cruzar de segmentos. Concentravam-se num
espaço que chegava a penetrar-lhe a imaginação. No início, a natureza da sua própria
esfera não lhe era conhecida, mas de permeio, novas evidências acabariam por
revelar ao mundo a sua emancipação pessoal.
Tuesday, November 18, 2014
Monday, November 17, 2014
O pesadelo
Indicaram-lhe
um cruzamento de caminhos e Alice escolheu um ao acaso.
Depois de
muito caminhar, encontrou finalmente o coelho que procurava.
- Alto,
menina. A Rainha está a chegar. Vai-te embora! Mas, Alice nada parecia perceber.
Viu uns
valetes com pernas a pintar as rosas de encarnado, até que subitamente chegou a Rainha
que quis jogar criquet com Alice, mas um gato fê-la tombar e foi um verdadeiro
sarilho.
Porém, ao
levantar-se a Rainha deu por falta dos brincos reais!
- Eu não os
tirei! disse Alice assustada.
- O meu
carrasco vai-te cortar a cabeça - anunciou a Rainha.
- Levem-na
para a cela! - gritou furibunda.
Nesse
momento Alice voltou ao mundo real...!
Será que tinha tido um pesadelo?
Sunday, November 16, 2014
No fio do horizonte
Na tua boca cantou subitamente uma
voz
E, ao dizeres o meu nome na rede de
um abraço,
o rio que outrora bordava o campo
emudeceu
com as suas pedras lisas. Então, foi
possível
ouvir o vento soprar nas asas das
borboletas
e os lagartos recolherem-se nos veios
dos muros
e o sol ferir-se nos espinhos das
roseiras.
Sobre a colina quente passou uma
nuvem
e uma ave poisou, perplexa, no fio do
horizonte -
por um instante, o dia mostrou as
suas pálpebras tristes;
e, na brancura cega desse entardecer,
a tua mão
escorregou pela inclinação do sol e
veio contar
as sombras do um decote.
São assim as mais pequenas histórias
do mundo.
Maria do Rosário Pedreira in O Canto
do Vento nos Ciprestes, 2001
Saturday, November 15, 2014
Friday, November 14, 2014
O delírio
No
descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem
que pegar delírio.
Manoel de Barros
Thursday, November 13, 2014
O mar
Se a
encostares ao ouvido
ouve-se o
mar
O que é
preciso é saber escutar
Jorge Sousa Braga in Fogo Sobre Fogo, Lisboa:
Fenda, 1ª edição, 1998
Wednesday, November 12, 2014
Horas e desoras
Não me desculpo. Se já me cai o cabelo se já não sinto os
ombros é
porque o amor é difícil ou a minha cabeça uma pedra
escura que carrego
sobre o corpo a horas e desoras ostentando-a como objecto
público sagrado
purulento. O odor que as pedras têm quando corpos. O
apocalipse de tudo
quando amamos. O nosso sangue em pó tornado entornado.
Luiza Neto Jorge in Difícil Poema de Amor – Poesia - Assírio
& Alvim - 2ª edição – 2001
Tuesday, November 11, 2014
Monday, November 10, 2014
Itinerâncias
É todo um outro cenário um nadinha menos movimentado
e sem qualquer dispersão. Sem gente, desde logo, a percepção visual do mar se amplia
e transfigura num mero processo de expansão. Real ou imaginário, cada elemento
da natureza nos traz um registo adicional com uma serenidade e subtileza que, nos
passa totalmente despercebido em Agosto.
Sunday, November 9, 2014
Os danos
Legitimados pelos votos e com a ausência de
alternativas mantinha-se a atitude de austeridade. Os efeitos destrutivos, ao
destacarem-se, levavam a que as gentes deixassem de confiar. A série de
excessos de capitalismo parecia agravar a situação, de resto, por si só bastante
complexa. Para já a expectativa era de uma certa reserva, ao mesmo tempo que,
se ansiava por um sopro de uma nova e arrojada criatividade.
Saturday, November 8, 2014
Friday, November 7, 2014
Depois de ti
Se tiveres de escolher um reino
escolhe
o relento
a
noite tem brancura do alabastro
ou
mais extraordinária ainda
Ao que
vem depois de ti
cede o
instante
sem
pronunciar
seu
nome
José Tolentino Mendonça in O
Viajante sem Sono - Assírio &
Alvim, 2009
Thursday, November 6, 2014
Espaço da infância
Convoco a memória do espaço da
infância
para com ela entender o esquivo
sofrimento
se em finitude me leva à inquieta
beira
a prosseguir temendo à revelia do
tempo
Não são os segredos mas o sinal sem
norte
transportando consigo transbordante e
breve
o desacerto que a vertigem liga ao
abandono
seduzindo-me menina entregue à sua
sorte
Foge o encanto e ainda mais amargo
na maçã o veneno dói e reclina
em desmesura unindo a fera e o afago
Desamado afecto na turvação que
ensina
ao punhal, a empurrar a ponta do
cuidado
cruel e indiferente à própria estima
Maria Teresa Horta in Inquietude -
Vila Nova de Famalicão - Edições Quasi, 2006
Wednesday, November 5, 2014
A descendência
Hoje, passada a madrugada, continuei o dia com a
minha parte mais sombria; soltaram-se-me as minhas recordações, presentes,
passadas e futuras, e não encontrava caminho linear entre elas.
Não só importa escrever sucessivamente, mas saber
quem me sucederá numa constelação de sentidos.
O que é a descendência?
A seiva sobe e desce numa árvore, estende-se pelos
ramos, e é regulada pelas estações; eu e a árvore dispomo-nos uma para a outra,
num lugar por nomear. Este lugar não tem significação de dicionário, não
transmigrou para nenhum livro.
Agora o sol, o solo, a solo, encadeiam-me nas
palavras. Esta madrugada aproximei-me
da certeza de que o texto era um ser.
Maria Gabriela Llansol in um falcão no punho - Edições Rolim, 1985
Tuesday, November 4, 2014
Os dez dedos
queria fechar-se
inteiro num poema
lavrado em língua ao mesmo tempo plana e plena
poema enfim onde coubessem os dez dedos
desde a roca ao fuso
para lá dentro ficar escrito direito e esquerdo
quero eu dizer: todo
vivo moribundo morto
a sombra dos elementos por cima
Herberto Helder in A Morte sem
Mestre - ed. Porto Editora, 2014
Monday, November 3, 2014
Em diagonal
Murmuro o teu nome ao rés da relva
Murmuro-o
Em diagonal da terra ao céu azul
Radiante
Felicíssimo
Não entendo nada.
Alberto de Lacerda in Resumo
Sunday, November 2, 2014
Por gestos lhe respondo
O teu amor espreita o meu corpo de longe. De longe por gestos
lhe respondo. Tenho raízes nos vulcões ternuras íntimas medos reclusos beijos nos dentes.
Luiza Neto Jorge in Difícil Poema de Amor – Poesia - Assírio
& Alvim - 2ª edição – 2001
Saturday, November 1, 2014
Friday, October 31, 2014
A coreografia
Sem sinais de recuperação, a natural
aspiração pelo poder levava-os a uma encenação. Quando diziam o que as pessoas
queriam ouvir era como se lhes vendessem uma ilusão. Com soluções de recurso, ausência
de motivação e sem qualquer noção de futuro a apatia generalizara-se entre o
povo. O peso da dívida impedia-lhes o crescimento e, uma vez mais, adiava-lhes todos
os sonhos.
Thursday, October 30, 2014
Sem janelas
As nuvens não se rasgaram
nem o sol: só a porta
do meu quarto
A abrir-se noutras
portas dando para outros
quartos e um corredor ao fundo
Não havia janelas nem
silêncios: sinfonias por dentro
a rasgar o silencio
A porta do meu quarto
já nem porta: madeiramento
para o fogo
Ana Luisa Amaral
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