Tudo se iniciou, subitamente, a
partir dum determinado momento. E, na ausência de lógica, tentou dar um sentido
ao movimento que os juntou. Os lugares, as datas e a poesia que se lhe seguiram
circularam livremente, sem que alguma vez tivesse sido interrompido. Os dias,
simplesmente, se iam desdobrando, um a um, acabando por se entrelaçar.
Friday, February 28, 2014
Thursday, February 27, 2014
Grito de alegria
Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.
Eugénio de Andrade in As Palavra Interditas
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.
Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.
Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:
o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.
Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.
Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.
Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.
Eugénio de Andrade in As Palavra Interditas
Wednesday, February 26, 2014
Uma casa portuguesa
Quatro paredes caiadas,
um cheirinho a alecrim,
um cacho de uvas doiradas,
duas rosas num jardim,
São José de azulejo
mais um sol de primavera...
uma promessa de beijos...
dois braços à minha espera...
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
um cheirinho a alecrim,
um cacho de uvas doiradas,
duas rosas num jardim,
São José de azulejo
mais um sol de primavera...
uma promessa de beijos...
dois braços à minha espera...
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
Reinaldo Ferreira
Tuesday, February 25, 2014
A encenação
De alguma maneira, poucas dúvidas lhes restavam. A
vida era completamente diferente do que eles queriam fazer crer. Não era a
representação do real, mas uma outra realidade inventada, que em nada
correspondia aos anseios e satisfação das expectativas. O seu guião, desenhado
em interesse próprio, não só não ia ao encontro do mínimo exigível, como estava
cheio de artifícios narrativos. Sem sequer definirem linhas para um futuro
próximo, a presença dos protagonistas adivinhava o colapso, de ilusão em
ilusão, até ao fracasso final.
Monday, February 24, 2014
Novas visões
Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.
Cecília Meireles
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.
Cecília Meireles
Sunday, February 23, 2014
Uma coisa mecânica
Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a
noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento.
Adélia Prado
Saturday, February 22, 2014
Friday, February 21, 2014
Todas as estradas
Lembra-te
que todos os momentos
que nos coroaram
todas as estradas
radiosas que abrimos
irão achando sem fim
seu ansioso lugar
seu botão de florir
o horizonte
e que dessa procura
extenuante e precisa
não teremos sinal
senão o de saber
que irá por onde fomos
um para o outro
vividos
Mário Cesariny in Pena Capital - Assírio
& Alvim
Thursday, February 20, 2014
A conquista dos espaços
Gaivota que se preza
tem de sentir as
estrelas,
analisar paraísos,
conquistar múltiplos
espaços.
Fernão Capelo Gaivota
Wednesday, February 19, 2014
Diz-lhe
Se o vires, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que me sento na cama, distraída, a dobar demoras
e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.
Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por
causa dos outros laços que não desfaço, sei que o
amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se
o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso
sempre, mas não de mais; e que os invernos que ele
não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos
separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,
mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires,
diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.
Mª. do Rosário Pedreira
Tuesday, February 18, 2014
Monday, February 17, 2014
No enumerar das coisas
O poema em que te busco é a minha rede,
Bem mais de
borboletas que de peixes,
E é o copo em que te
bebo: morro à sede
Mas ainda és
margarida e não-me-deixes
E muito mais, no
enumerar das coisas:
Cordão de laço e
corda de violino,
Saliva de verdade
nalgum beijo,
E poisas
Como ave de aço em
pão se não te vejo.
Mas onde mais real do
céu me avisas
É nas tuas camisas,
Calças de cor no
catre bem dobradas.
E és os meus
pensamentos, se te ausentas,
Meu ciúme escuro como
vinho em toalha;
E o branco circular
das horas lentas
Que um perfurante
amor lembrado espalha.
Põe o penso no velo
intercrural
Com um atilho
vertical:
Rosa coberta esquiva
Quer a mão do desejo,
quer
O conhecido cravo da agressão
Que estendo às tuas
formas de mulher,
Com esta soma e
verbal percaução
De um fónico doutor
de Mompilher.
Vitorino Nemésio in Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga
Sunday, February 16, 2014
Pintura perdida
Faltam aos
planos das cidades
esfinges aladas
palmas fora de
tempo, matagais
pequenos
acrescentos a vermelho
Faltam atlas com
algum detalhe
para as emissões
nocturnas
nos agudos da
nossa incerteza
falta uma beleza
a olhar para nós
indiscernível,
entreaberta ainda
Talvez a nós
próprios falte
essa grande
medida
insondáveis
cordas na travessia
uma juventude
que o mundo possa
documentar
os teus olhos
são o que resta
dos livros
sagrados
e da grande
pintura perdida
José Tolentino Mendonça in O Viajante
Sem Sono, Assírio & Alvim
Saturday, February 15, 2014
Friday, February 14, 2014
Parêntesis amoroso
Como se não houvesse mais nada em
volta, a certa altura, é juntos que nos encontramos a partilhar o momento -
único e irrepetível! Debruçados um no outro, o sentimento, digam o que
disserem, é, tão-somente, de procura, através da reciprocidade de gestos, olhares
implícitos e a utilização das palavras mais ternas, longe de conflitos, e em
harmonia com o mundo.
Thursday, February 13, 2014
Espaço radiofónico
Feita de múltiplas vozes, a sociedade
continua a desfrutar da sua companhia em momentos absolutamente apaixonantes. A
música mantém um papel predominante, e o seu som é vibrante pontuado por
diferentes tendências. A rádio que, celebramos neste dia, continua
profundamente sugestiva, além de lhe não faltar imediatismo ou mobilidade.
Pessoalmente, pertenço a uma geração marcada por folhetins, pelos relatos de
futebol do Alves dos Santos e Artur Agostinho, e o «Em órbita» com o melhor e
mais avançado da música popular anglo-americana, em meados da década de 60, com
níveis de audiência absolutamente espantosos.
Não esquecer, ainda, que foi à rádio que, numa verdadeira manifestação
de energia, coube acompanhar o grande desafio do 25 de Abril.
Wednesday, February 12, 2014
Por outro lado
Partindo de onde é mais difícil lá
chegar, sentia que, já não podia voltar atrás. A manhã parecia trazer-lhe
algumas surpresas, quando o real e o fantástico, não estariam, assim, tão
distantes um do outro. Um sentimento de inquietude crescia lentamente, ao mesmo
tempo que, os olhos se lhe alargavam a tentar espreitar o que havia para lá do
que conhecia. Mas, dificilmente se compreenderia, ou seria esclarecedor.
Tuesday, February 11, 2014
Esta cabeça não é minha
nunca mais quero escrever numa língua
voraz,
porque já sei que não há entendimento,
quero encontrar uma voz paupérrima,
para nada atmosférico de mim mesmo: um
aceno de mão rasa
abaixo do motor da cabeça,
tanto a noite caminhando quanto a manhã
que irrompe,
uma e outra só acham
a poeira do mundo:
antes fosse a montanha ou o abismo -
estou farto de tanto vazio à volta de
nada,
porque não é língua onde se morra,
esta cabeça não é minha, dizia o amigo
do amigo, que me disse,
esta morte não me pertence,
este mundo não é o outro mundo que a
outra cabeça urdia
como se urdem os subúrbios do inferno
num poema rápido tão rápido que não doa
e passa-se numa sala com livros, flores
e tudo,
e não é justo, merda!
quero criar uma língua tão restrita que
só eu saiba,
e falar nela de tudo o que não faz
sentido
nem se pode traduzir no pânico de outras
línguas,
e estes livros, estas flores, quem me
dera tocá-los numa vertigem
como quem fabrica uma festa, um teorema,
um absurdo,
ah! um poema feito sobretudo de fogo
forte e silêncio
Herberto Helder in Servidões, Lisboa: Assírio & Alvim, 2013
Monday, February 10, 2014
Sunday, February 9, 2014
Excentricidades
Estonteada, e sem nada perceber, Alice saiu
dali disparada. Mais à frente, viu os soldados da Rainha de Copas a pintar as
flores brancas que ali existiam de encarnado.
- Mas por que estão a pintar as flores brancas de encarnado?
- Plantámos flores brancas por engano. Como a Rainha só gosta
de flores encarnadas, se não pintarmos as flores brancas dessa cor, ela manda
cortar as nossas cabeças, responderam eles.
No Reino de Copas, tirando essa maluquice toda, tudo corria
normalmente.
Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas
Saturday, February 8, 2014
A vida é um jogo
A palestra de hoje, conduzida
pelo André, deu-nos a oportunidade de reflectir um pouco sobre cada um de nós –
actores de uma peça de teatro no palco do mundo. No filme da vida distinguem-se
dois tipos de personagens. O bom actor e o menos bom. A meta é sermos cada vez melhores, através da prática do bem, com a sabedoria como nossa
companheira e, entendendo a mensagem para além de quaisquer palavras. O bem é
puro e grandioso e traz-nos benefícios que, culminam com a conquista da
felicidade. Só se nos focarmos nas nossas qualidades espirituais conseguimos
desenvolver o potencial interior cujo expoente máximo se traduz na essência
virtuosa que, nos leva a experimentar a paz em sintonia com o todo.
Controlando emoções, sem nos
deixarmos dominar por elas, tal como o bambu permaneceremos leves, firmes, e
flexíveis, sentindo na pele a brisa de paz que nos irá embalar.
Friday, February 7, 2014
O vento
Naquela tarde quebrada
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento
contra o meu ouvido atento
eu soube que a missão das folhas
é definir o vento
Ruy Belo
Thursday, February 6, 2014
Além do tempo
Nosso amor é impuro
como impura é a luz e
a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.
E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.
E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.
Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.
Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.
Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.
E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.
E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.
Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.
Mia Couto in idades cidades divindades
Wednesday, February 5, 2014
A condição humana
De certo modo, a imagem, não só, dispensa
quaisquer comentários como nos emudece perante o irrazoável. A sede que, ainda,
subsiste, cintila-lhe, assustadoramente, nos olhos que, não vemos, mas imaginamos de um efeito devastador.
Que o futuro não se limita apenas à resignação, e gestos e movimentos se
manifestem de uma forma mais consciente e menos ameaçadora.
Tuesday, February 4, 2014
Dupla celebração
À prova de pressões e da realidade agreste, olhando para o
seu percurso chega-se à conclusão que na sua vida há sempre qualquer espécie de
desafio, por isso a sua relação com ela é tão tórrida e inspiradora! Se
conseguisse acompanhá-la na correria, nas demais das vezes, obteria tudo aquilo
que pretendo fazer, até agora, sem sucesso.
Monday, February 3, 2014
Um só momento
Dai-me um dia branco, um mar de beladona
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.
Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.
Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.
Um dia em que se possa não saber.
Sophia de Mello Breyner
Um movimento
Inteiro, unido, adormecido
Como um só momento.
Eu quero caminhar como quem dorme
Entre países sem nome que flutuam.
Imagens tão mudas
Que ao olhá-las me pareça
Que fechei os olhos.
Um dia em que se possa não saber.
Sophia de Mello Breyner
Sunday, February 2, 2014
Saturday, February 1, 2014
Apontamentos
Construído em torno de sequências, o «Capricho» fez
a meio do mês passado 6 anos. O paralelismo com o quotidiano por mim
protagonizado não é ficção. Fragmentos de pequenos textos, histórias, poemas
reunidos, interrogações, e tudo o mais que se me perfila na mente, fazem parte
de um registo que, me proporciona momentos de pausa que, espero que seja, também, do agrado dos que por aqui passam.
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