Monday, March 17, 2014

Ser ímpar

 até cada objecto se encher de luz e ser apanhado
 por todos os lados hábeis, e ser ímpar,
 ser escolhido,
 e lampejando do ar à volta,
 na ordem do mundo aquela fracção real dos dedos  juntos
 como para escrever cada palavra:
 pegar ao alto numa coisa em estado de milagre: seja:
 um copo de água,
 tudo pronto para que a luz estremeça:
 o terror da beleza, isso, o terror da beleza  delicadíssima
 tão súbito e implacável na vida administrativa

 Herberto Helder, in «Servidões», Assírio & Alvim, 2013


Sunday, March 16, 2014

O insólito

No Reino de Copas, tirando alguma maluquice, tudo corria normalmente.
Um dia, porém, um soldado roubou uma fatia de bolo da Rainha. Foi preso para ser julgado e condenado. E Alice, mesmo sem saber do sucedido, foi convocada para testemunhar.

Estava para se iniciar o julgamento, quando algo muito estranho aconteceu. Alice começou a crescer, a crescer... e ficou muito alta, com mais de não sei quantos metros de altura, quando os soldados começaram a correr atrás dela para a expulsar do Reino como mandava a lei.

Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas

Saturday, March 15, 2014

Projecção luminosa


Friday, March 14, 2014

A entrega


Ao cair da tarde, a descrença tornara-se parte do seu quotidiano. Porém, ciente do seu poder de atracção e da delicadeza do seu traço, permitiu-se acreditar que, apesar do período menos brilhante, viria a ser bem-sucedida. Não tinha qualquer dúvida que acabaria por resistir ao momento mais sombrio da sua vida pela via da sedução. E, na sua teatralidade, encontraria a subtileza suficiente para um final airoso. Era uma questão de precaução. Bastava deixar que a noite a abraçasse presa àquele instante.

Thursday, March 13, 2014

A noite

Eu amo a noite, porque na luz fugida as silhuetas indecisas das mulheres são como as silhuetas indecisas das mulheres que vivem em meus sonhos.

Almada Negreiros in Frisos - Revista Orpheu nº1

Wednesday, March 12, 2014

Um olhar

É muito bela esta mulher desconhecida
que me olha longamente
e repetidas vezes se interessa
pelo meu nome

eu não sei
mas nos curtos instantes de uma manhã
ela percorreu ásperas florestas
estações mais longas que as nossas
a imposição temível do que
desaparece

e se pergunta tantas vezes o meu nome
é porque no corpo que pensa
aquela luta arcaica, desmedida se cravou:
um esquecimento magnífico
repara a ferida irreparável
do doce amor

José Tolentino Mendonça in A Noite Abre Meus Olhos - Assírio & Alvim, 2006


Tuesday, March 11, 2014

Questão

Desfolhar uma rosa
é poesia
ou prosa?

Cruzeiro Seixas

Monday, March 10, 2014

Experiência directa

Há cerca de um ano, uma inesperada cirurgia afastou-me do meu companheiro de eleição, quando tive de recorrer a ajuda profissional. Foi nessa altura que, a Virgínia me foi recomendada, para na minha ausência ficar a olhar pelo Rico. Dessa colaboração merece especial evidência a empatia, praticamente imediata, entre ambos. A sua proximidade com cães exige dela uma grande firmeza, disciplina e muita dinâmica, revelando-se numa cumplicidade que, sem dúvida, marca a diferença quando a distância se torna irredutível e a importância da integração e bem-estar dos nossos animais de estimação nos proporciona uma paz de espírito, imprescindível, no meu caso pessoal, para uma adequada recuperação da saúde. Além de admirar o seu trabalho, o espaço que dirige, assegura protecção e segurança, em harmonia com a natureza envolvente, satisfazendo todas as necessidades dos nossos melhores amigos. Se, voltar a precisar, não hesitarei onde deixar o Rico porque confio, totalmente, na sua intuição e eficiência.

Sunday, March 9, 2014

Ao domingo

O sol adormece nos telhados ao domingo

Mª. Rosário Pedreira

Saturday, March 8, 2014

Celebração






A nossa amiga Lurdes festejou mais um aniversário,que coincide com o Dia Mundial da Mulher, reunindo os amigos mais próximos, num almoço vegetariano e saudável, no restaurante Eurásia. Que este dia se venha a repetir por muitos e longos anos.

Friday, March 7, 2014

Desejos íntimos


Thursday, March 6, 2014

Trajecto

Vou. Por vezes um pouco cegamente estendendo a mão para a folha em branco. É o meu percurso, o meu trajecto máximo que retomo e retomo. Mas nada preenche o vazio essencial que a escrita revela.

Ana Hatherly

Wednesday, March 5, 2014

Reflexos

Senti que tu querias falar comigo, na verdade e verdadeiramente; que, à falta de companheiros contemporâneos, tinhas vindo até à beira da minha cama reflectida na água; também estavas reflectido no teu livro como se a tua boca lesse o que escrevias. Senti então amor por ti, mais e menos que paixão, uma espécie de modificação dos sentimentos do amor. Tu ajudavas-me a escrever, eu era uma das tuas necessidades mais amadas.



Maria Gabriela Llansol

Tuesday, March 4, 2014

Entre sons e cores



A alegria das gentes que, habitam as cidades de todo o país, brilhou, uma vez mais, quando, por estes dias, os nossos olhares se detiveram, sem nos afastarmos dos grandes centros urbanos, para um espectáculo absolutamente mágico! Neste Carnaval, tal como em tantos outros, foi em percurso lento que ninguém deixou de acrescentar um simples passo ou movimento de samba, na mais longa coreografia que, a paixão por esta festividade suscita!

Monday, March 3, 2014

As planas constelações de espelhos

O espelho é uma chama cortada, um astro.
E há uma criança perpétua, por dentro, quando se vive em recintos
cheios de ar alumiado. De fora, arremessam-se
               às janelas
as ressacas vivas dos parques. Ela toca o nó
               do espelho de onde salta
uma braçada de luz. Cada lenço que ata,
               a própria seda do lenço
o desata. E o rosto que jorra do espelho
               volta aos centros
               arteriais.


Todos os anos fundos, essa extensa criança
sente brotar da terra como árvores
               do petróleo
a peste bubónica, fina na temperatura, alastrada nos bordados
das paredes ou nas crateras da cama. Os lençóis
               nascem do linho que trepida
no abismo da terra, das sementes abraçadas pelas ramas
               das nebulosas.


É perfeito o espelho quando apanha
               um rosto nuclear.
Morre-se muito mais em cada doença, nesses
apartamentos que as noites sufocam
               nos braços de mármore.
               A energia das jóias.
O nó do sexo no espelho, as chamas agarradas
               entre o umbigo e o ânus.
Esse trabalho da claridade quando as válvulas
               se destapam


Correntes atómicas passam de lado a lado.
E ficam os buracos furiosos por onde o mundo
               sopra
               um meteoro a jacto, uma cara.
Os jardins deslocam-se através de si próprios
               com as centelhas, defronte
das planas constelações dos espelhos.


E então, na assimetria severa, ela amaria
               transformar-se,
súbita e solar  -  equinocialmente no espelho o relâmpago
               côncavo do girassol
espacial.  Que sai assim do corpo: os filões arrancados
               desse mesmo espelho.
E ela imagina na teia de fogo a argila que se transmuda
em porcelana: a curva labareda de uma chávena
               expelida dos fornos.
E entre guardanapos, da mesa à boca,
arde em seu anel de estrelas metalúrgicas
               a colher em órbita
               -   a assombrosa força terrestre da chávena.
E a infância desaparece nas funduras das casas,
               com os electrões fechados.



herberto helder in POESIA TODA - ASSÍRIO & ALVIM  1990

Sunday, March 2, 2014

O caos

Quase me esqueci que tenho que crescer novamente! Deixa-me ver - como é que se faz isso? Eu acho que deveria comer ou beber alguma coisa, mas a grande questão é "o quê?"
E Alice olhou ao seu redor para as flores e a relva mas não viu nada que parecesse a coisa certa para comer ou beber naquela precisa circunstância. Porém, havia um grande cogumelo perto dela, quase da mesma altura de Alice e, ao observá-lo de todos os lados, avistou uma enorme lagarta azul, sentada, a fumar, em cima da planta.
A Lagarta e Alice olharam-se por algum tempo em silêncio, e por fim, a Lagarta dirigiu-se à menina com uma voz lânguida e sonolenta.
"Quem és tu?", perguntou a Lagarta.
Alice retorquiu-lhe timidamente: "Eu - eu não sei muito bem, no momento presente - pelo menos eu sabia quem eu era quando me levantei esta manhã, mas acho que, desde então, mudei demasiadas vezes.
"O que queres dizer com isso? perguntou a Lagarta ."Explica-te!"
"Eu não sei explicar ", respondeu Alice, "porque eu não sou eu mesma, vê?"
"Eu não vejo nada", retomou a Lagarta.

Eu própria não consigo entender, ter tantos tamanhos diferentes num só dia, acaba por se tornar muito confuso."

Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas

Saturday, March 1, 2014

Amplitude expressiva


Friday, February 28, 2014

Evasão

Tudo se iniciou, subitamente, a partir dum determinado momento. E, na ausência de lógica, tentou dar um sentido ao movimento que os juntou. Os lugares, as datas e a poesia que se lhe seguiram circularam livremente, sem que alguma vez tivesse sido interrompido. Os dias, simplesmente, se iam desdobrando, um a um, acabando por se entrelaçar. 

Thursday, February 27, 2014

Grito de alegria

Procuro a ternura súbita,
os olhos ou o sol por nascer
do tamanho do mundo,
o sangue que nenhuma espada viu,
o ar onde a respiração é doce,
um pássaro no bosque
com a forma de um grito de alegria.

Oh, a carícia da terra,
a juventude suspensa,
a fugidia voz da água entre o azul
do prado e de um corpo estendido.

Procuro-te: fruto ou nuvem ou música.
Chamo por ti, e o teu nome ilumina
as coisas mais simples:

o pão e a água,
a cama e a mesa,
os pequenos e dóceis animais,
onde também quero que chegue
o meu canto e a manhã de maio.

Um pássaro e um navio são a mesma coisa
quando te procuro de rosto cravado na luz.
Eu sei que há diferenças,
mas não quando se ama,
não quando apertamos contra o peito
uma flor ávida de orvalho.

Ter só dedos e dentes é muito triste:
dedos para amortalhar crianças,
dentes para roer a solidão,
enquanto o verão pinta de azul o céu
e o mar é devassado pelas estrelas.

Porém eu procuro-te.
Antes que a morte se aproxime, procuro-te.
Nas ruas, nos barcos, na cama,
com amor, com ódio, ao sol, à chuva,
de noite, de dia, triste, alegre — procuro-te.

Eugénio de Andrade in As Palavra Interditas


Wednesday, February 26, 2014

Uma casa portuguesa






Quatro paredes caiadas,
um cheirinho a alecrim,
um cacho de uvas doiradas,
duas rosas num jardim,
São José de azulejo
mais um sol de primavera...
uma promessa de beijos...
dois braços à minha espera...
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
É uma casa portuguesa, com certeza!
É, com certeza, uma casa portuguesa!
Reinaldo Ferreira

Tuesday, February 25, 2014

A encenação

De alguma maneira, poucas dúvidas lhes restavam. A vida era completamente diferente do que eles queriam fazer crer. Não era a representação do real, mas uma outra realidade inventada, que em nada correspondia aos anseios e satisfação das expectativas. O seu guião, desenhado em interesse próprio, não só não ia ao encontro do mínimo exigível, como estava cheio de artifícios narrativos. Sem sequer definirem linhas para um futuro próximo, a presença dos protagonistas adivinhava o colapso, de ilusão em ilusão, até ao fracasso final.

Monday, February 24, 2014

Novas visões

Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.



Cecília Meireles

Sunday, February 23, 2014

Uma coisa mecânica

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica, mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento.

Adélia Prado

Saturday, February 22, 2014

Friday, February 21, 2014

Todas as estradas


   Lembra-te
 que todos os momentos
 que nos coroaram
 todas as estradas
 radiosas que abrimos
 irão achando sem fim
 seu ansioso lugar
 seu botão de florir
 o horizonte
 e que dessa procura
 extenuante e precisa
 não teremos sinal
 senão o de saber
 que irá por onde fomos
 um para o outro
 vividos

 Mário Cesariny in Pena Capital - Assírio & Alvim

Thursday, February 20, 2014

A conquista dos espaços

 Gaivota que se preza
 tem de sentir as estrelas,
 analisar paraísos,
 conquistar múltiplos espaços.


Fernão Capelo Gaivota

Wednesday, February 19, 2014

Diz-lhe

Se o vires, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que me sento na cama, distraída, a dobar demoras
e, sem querer, talvez embarace as linhas entre nós.
Mas que, mesmo perdendo o fio da meada por
causa dos outros laços que não desfaço, sei que o
amor dá sempre o novelo melhor da sua mão. Se

o encontrares, diz-lhe que o tempo dele não passou;
que só me atraso outra vez, e ele sabe que me atraso
sempre, mas não de mais; e que os invernos que ele
não gosta de contar, mas assim mesmo conta que nos
separam, escondem a minha nuca na gola do casaco,
mas só para guardar os beijos que me deu. Se o vires,


diz-lhe que o tempo dele não passa, fica sempre.

Mª. do Rosário Pedreira

Tuesday, February 18, 2014

A placidez dos campos





Todos os caminhos nelas convergem proporcionando-nos um deslumbrante espectáculo. Brotam, quais flocos de neve, embaladas pela brisa suave que, rapidamente, acaba por as desvanecer. Nesta altura do ano, as amendoeiras em flor são a razão do êxtase deste espaço idílico de pura magia.  

Monday, February 17, 2014

No enumerar das coisas

 O poema em que te busco é a minha rede,
 Bem mais de borboletas que de peixes,
 E é o copo em que te bebo: morro à sede
 Mas ainda és margarida e não-me-deixes
 E muito mais, no enumerar das coisas:
 Cordão de laço e corda de violino,
 Saliva de verdade nalgum beijo,
 E poisas
 Como ave de aço em pão se não te vejo.
 Mas onde mais real do céu me avisas
 É nas tuas camisas,
 Calças de cor no catre bem dobradas.
 E és os meus pensamentos, se te ausentas,
 Meu ciúme escuro como vinho em toalha;
 E o branco circular das horas lentas
 Que um perfurante amor lembrado espalha.
 Põe o penso no velo intercrural
 Com um atilho vertical:
 Rosa coberta esquiva
 Quer a mão do desejo, quer
 O conhecido cravo da agressão
 Que estendo às tuas formas de mulher,
 Com esta soma e verbal percaução
 De um fónico doutor de Mompilher.


Vitorino Nemésio in Caderno de Caligraphia e outros Poemas a Marga

Sunday, February 16, 2014

Pintura perdida

Faltam aos planos das cidades
esfinges aladas
palmas fora de tempo, matagais
pequenos acrescentos a vermelho

Faltam atlas com algum detalhe
para as emissões nocturnas
nos agudos da nossa incerteza
falta uma beleza
a olhar para nós
indiscernível, entreaberta ainda

Talvez a nós próprios falte
essa grande medida
insondáveis cordas na travessia
uma juventude que o mundo possa
documentar

os teus olhos são o que resta
dos livros sagrados
e da grande pintura perdida


José Tolentino Mendonça in O Viajante Sem Sono, Assírio & Alvim

Saturday, February 15, 2014

Fora de cena

Friday, February 14, 2014

Parêntesis amoroso

Como se não houvesse mais nada em volta, a certa altura, é juntos que nos encontramos a partilhar o momento - único e irrepetível! Debruçados um no outro, o sentimento, digam o que disserem, é, tão-somente, de procura, através da reciprocidade de gestos, olhares implícitos e a utilização das palavras mais ternas, longe de conflitos, e em harmonia com o mundo.

Thursday, February 13, 2014

Espaço radiofónico

Feita de múltiplas vozes, a sociedade continua a desfrutar da sua companhia em momentos absolutamente apaixonantes. A música mantém um papel predominante, e o seu som é vibrante pontuado por diferentes tendências. A rádio que, celebramos neste dia, continua profundamente sugestiva, além de lhe não faltar imediatismo ou mobilidade. Pessoalmente, pertenço a uma geração marcada por folhetins, pelos relatos de futebol do Alves dos Santos e Artur Agostinho, e o «Em órbita» com o melhor e mais avançado da música popular anglo-americana, em meados da década de 60, com níveis de audiência absolutamente espantosos.

Não esquecer, ainda, que foi à rádio que, numa verdadeira manifestação de energia, coube acompanhar o grande desafio do 25 de Abril.