Moram num ninho à minha porta. O bater de asas, soa-me a uma música delicada, ponderada por pausas quase imperceptíveis. O canto é límpido, aberto e radioso. À luz do sol se autonomizam, em perseguição de outro lugar de temperaturas abrasivas. Os rituais mecanizados e a autenticidade dos gestos, ampliam-lhes a beleza, na rota inevitável em cumprimento de um destino. Anos após anos, apenas me visitam no meu mundo tão devastador quanto incompleto, quando os ventos lhes são mais favoráveis. E, no meu exercício de olhar, vejo-as ganhar uma veloz altitude, atravessando os céus para o misterioso silêncio. No espaço vazio, não passam de meros vislumbres isolados, semi-apagados numa sequência de sombras.
Tuesday, June 29, 2010
Saturday, June 26, 2010
Os diálogos
Integrado no programa de encerramento do 5º Ciclo de Leituras, a Cláudia e a Patrícia do Bica Teatro, permitiram uma leitura cómoda e eficaz de fragmentos de textos de várias obras de Lídia Jorge, com dramaturgia e encenação de Neto Portela. A construção das personagens tal como as imaginaram, e a expressividade e narrativa corporal intensas, serviram o propósito de traduzir sentimentos tão fortes quanto os da partida e da chegada, ou a intimidade dos seres naquilo que de mais silencioso possuem através do domínio do gesto, ou de pássaros de papel distribuídos pelo público no final.
Interpelada pela a assistência na segunda parte, a escritora fala-nos primeiramente do convívio com José Saramago, falecido recentemente, e da sua notoriedade, à qual acrescento a coragem de contrariar. Depois, revela-nos que ao contrário da maioria dos autores, não é disciplinada nem arrumada, e que até gere mal a sua vida, limitando-se a escrever no tempo que sobeja sob a inspiração dum quotidiano vasto. Sem cadeiras vazias, e sem vácuo, a reacção de todos só poderia ser surpreendente e calorosa. Parabéns à coordenadora deste projecto, Paula Miguel, que na hora de criar soube ganhar mais uma aposta.
Interpelada pela a assistência na segunda parte, a escritora fala-nos primeiramente do convívio com José Saramago, falecido recentemente, e da sua notoriedade, à qual acrescento a coragem de contrariar. Depois, revela-nos que ao contrário da maioria dos autores, não é disciplinada nem arrumada, e que até gere mal a sua vida, limitando-se a escrever no tempo que sobeja sob a inspiração dum quotidiano vasto. Sem cadeiras vazias, e sem vácuo, a reacção de todos só poderia ser surpreendente e calorosa. Parabéns à coordenadora deste projecto, Paula Miguel, que na hora de criar soube ganhar mais uma aposta.
Friday, June 25, 2010
A cal e a terra
Os edifícios do mundo, o insustentável desenvolvimento e o labor intenso, levam-me para longe numa circunstância de pausa. A cada passo, olho com prazer e pressinto a natureza quase sem dar por ela. Ao revisitar a largueza do monte e o plantio, ganho novos sentidos, recuperando memórias de infância que me servem de companhia. Na procura de contrastes e equilíbrios, retenho o melhor para lá do visível. E, é no silêncio intacto que me cruzo num imaginário tão-só emotivo como inatingível. Antes do sol se despedir do dia, é preciso desimpedir o caminho e, escutar os sons entre a viscosidade dos pinheiros recortados pelos reflexos de luz. Periclitante, desenho contornos em momentos de transitoriedade, até à serenidade total.
Wednesday, June 23, 2010
Alegria lilás
Registei-as há dias, em Évora, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar. Cruzei-me com elas à beira da estrada, alinhadas nas ruas, acumuladas em tudo o que é sitio desde que chegou a primavera, como se tomassem conta de mim. Delas me abeiro e, ao contemplá-las, deixo-me preencher por pinceladas de cor. Suspensas por cima de mim, ganho a ampla visão do céu a perder de vista sem princípio nem fim. Impossível tocar-lhe. Acariciada pela sombra, pisando um manto de flores, apenas saúdo o violeta-claro dos jacarandás em diálogo com a transcendência.
Wednesday, June 16, 2010
Tuesday, June 15, 2010
As flores e as rimas
Enquanto o deixo em infusão por alguns minutos, abraço a paisagem do lado de lá da vidraça. Emergindo do verde, a cultura alinhada do chá dá expressão ao declive numa sinfonia de cores. Bela-luisa, poejo, tília, camomila, príncipe, todos lá estão.
As nuvens cobrem o sol, mas o ar é lavado, e a lindíssima vista é para longe que me leva. Contudo, é na partilha da amizade que me reencontro, ao mesmo tempo que a subtileza das palavras me distancia do mundo real. Prevalece tão-somente o momento dos versos populares e dos poemas que falam, e retêm o amor absoluto e sem fim. Eis que o adoço com mel, vagarosamente saboreando o agradável trago e o suave aroma, que quente e reconfortante me anima por dentro e me restaura os níveis de energia. Enfeitada de flores, dos jardins de cada convidada, a mesa ganha nova tonalidade até que chegam os scones e compota, e para as mais gulosas o bolo de chocolate e os doces tradicionais! De colo em colo chora o Pedrinho, cuja mãe irradia para além de si. Em contraluz, filtrado pelos vidros do terraço, um raio de sol reflecte o horizonte já quase impossível de identificar.
O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento
Sophia de Mello Breyner Andresen
Tuesday, June 8, 2010
Ciclos do Ser
Resultante dos nossos actos, o karma segundo as filosofias orientais, é algo de dinâmico que em permanente acção, nos permite resgatar o passado e evoluir. Incontáveis são as nossas existências, até alcançarmos um estado de iluminação de perfeição, sem que precisemos mais reincarnar.
Monday, June 7, 2010
No alto mar
... Meu amor é marinheiro
e mora no alto mar
seus braços são como o vento
ninguém os pode amarrar.
e mora no alto mar
seus braços são como o vento
ninguém os pode amarrar.
.
Quando chega à minha beira
todo o meu sangue é um rio
onde o meu amor aporta
seu coração - um navio.
Quando chega à minha beira
todo o meu sangue é um rio
onde o meu amor aporta
seu coração - um navio.
.
Meu amor disse que eu tinha
uns olhos como gaivotas
e uma boca onde começa
o mar de todas as rotas.
.
uns olhos como gaivotas
e uma boca onde começa
o mar de todas as rotas.
.
Meu amor disse que eu tinha
na boca um gosto a saudade
e uns cabelos onde nascem
os ventos e a liberdade.
na boca um gosto a saudade
e uns cabelos onde nascem
os ventos e a liberdade.
(…)
Manuel Alegre
Manuel Alegre
Saturday, June 5, 2010
Ângulo de visão
No âmbito das comemorações dos seus 50 anos de Artes, a Galeria Samora Barros, inaugurou neste final de tarde uma exposição dedicada à pintura de Manuel Ribeiro. Com o rolar do tempo, também a poesia se confunde com a própria vida, definindo toda a sensibilidade artística e o quão longe vai o seu olhar.
Tuesday, June 1, 2010
O melhor do mundo
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
.
Fernando Pessoa
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!
Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...
.
Fernando Pessoa
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