Tuesday, September 30, 2014

Uma ausência de nome

Em voz alta, ensaiei o teu nome:
a palavra partiu-se
Nem eco ínfimo neste quarto
quase oco de mobília

Quase um tempo de vida a dormir
a teu lado e o desapego é isto:
um eco ausente, uma ausência de nome
a repetir-se

saber que nunca mais: reduzida
a um canto desta cama larga,
o calor sufocante

Em vez: o meu pé esquerdo
cruzado em lado esquerdo
nesta cama

O teu nome num chão
nem de saudades


Ana Luisa Amaral in Se fosse um intervalo

Monday, September 29, 2014

Jogos de sons



A partir de uma pluralidade de estilos, o concerto de jazz que, marcou o início do Outono, trouxe-nos uma série de peças onde acordes, tempos e compassos fluíram com grande engenhosidade. Dificilmente explicável torna-se impossível não se ficar fascinado com a espontaneidade de tão diferentes possibilidades musicais.

Sunday, September 28, 2014

Aquela praia

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.


Sophia de Mello Breyner Andresen

Saturday, September 27, 2014

Abandonada pelo tempo


Friday, September 26, 2014

Memorável

Tudo que é bom
Dura o tempo necessário
Para ser inesquecível


Fernando Pessoa

Thursday, September 25, 2014

Nobre cabeça

Como se poderia desfazer em mim a tua nobre cabeça, essa
torre deslumbrada pelo mudo calor dos dias, pelo
brilhante gelo nocturno? É pela cabeça
que os mortos maravilhosamente pesam
no  nosso coração. Essas flores intangíveis para as quais
temos medo de sorrir, as armas
lavradas, as liras que estremecem e pendem
sobre os rios agitados das coisas. Só o amor as abre
e vê sua confusa e grave geografia, as fontes
livres de onde os pensamentos crescem
como a folhagem iluminada das antigas idades
do ouro.

Eu próprio levanto minha exígua cabeça de vivo,
procuro colocar-me num ponto irradiante
da terra, olhar de frente
com toda a inspiração do meu passado, e estar
à altura dos mortos, na zona
esplêndida e vasta
da sua nobreza - receber essa espécie de força
indestrutível
que envolve a cabeça montada sobre os dias e dias,
de que as rosas bebem  o jeito aéreo e a boca
a delicadeza misteriosa.

Existem árvores cercando os animais sonhadores, o grande
arco das eras com os fogos rápidos
presos como campânulas, e a fixa vontade
do homem ardendo e gelando
no tempo. À beira dos rios canta-se ou deixa-se
que as mãos se gastem, deslumbradas
do seu poder, da sua grande miséria
como um sonho. Um nome, contudo, existe
suspenso sobre as estações do ano. Essa cabeça
dos mortos - a tua cabeça aérea como o verde
das pedras ou o movimento
das corolas frias,
essa cabeça sumptuosa, rodeada de estreitas
víboras -
sobe do nosso, do meu coração, até que a minha
mesma cabeça
nada mais seja que a possessiva, doce cabeça
dos mortos.

herberto helder in elegia múltipla, poema I - poesia toda - assírio & alvim 1996


Wednesday, September 24, 2014

O regresso

Havia Verões cuja memória se não queria perder e, apenas reforçavam o desfilar de imagens, na maioria dos casos junto ao mar. Coisas banais que, pela sua dimensão, Mariana ia recuperando uma a uma. e se viriam a completar. O som prolongado das ondas do mar, as mudanças bruscas de marés, e o despojamento sublime de toda aquela grandeza, e por aí fora. Sim, esse era, sem dúvida, o seu cenário. Quase perfeito. Recuperado de um simples sopro no espaço que, a bem dizer, precisou de reinventar. 

Tuesday, September 23, 2014

Estado de alma

Estou olhando os frutos repousados

e as pequenas sombras alongadas
sobre a mesa de madeira e pedra.
A brisa entra por uma porta antiga.
Uma pétala branca cai de uma flor branca.
Sou, mais do que sou, estou
na perfeição das coisas que me envolvem.
Repouso na sinuosa exactidão.


António Ramos Rosa in Poemas de A Rosa Esquerda - Leya - Lisboa, 2009

Monday, September 22, 2014

Final do Verão





Encontro de amigos na Casa Malembe, em Centieira onde a vista se estende pela serra de Alte distante do litoral turístico.

Sunday, September 21, 2014

Sem domingos

Com que roupa
 vestirei minha alma
 agora que já não há domingos?

Mia Couto

Saturday, September 20, 2014

Exercício livre


Friday, September 19, 2014

Conjugação dos tempos

Relativamente próxima, a praia era apenas mais um atractivo, quando lhe sobravam alguns momentos de ócio. De um modo geral, a sua dimensão preenchia-lhe o vazio e mais não era que a expressão da latitude perfeita. 

Thursday, September 18, 2014

Pelos olhos adentro

Entrar de repente pelos olhos adentro e escancarar

as árvores: mas aquilo que amaste perdura.

Junto da água morna os animais aguardam o ruído

vegetal da noite, e as luzes bocejam

a mansidão das pernas esticadas: o amor

não tem tempo, e dura no que amaste.

Dura de repente nos olhos abertos e

a água que respira no flanco dos animais

bocejando devagar a chegada da noite e das

redes e os passos mornos dos caçadores,

e as luzes escancaradas do silêncio. Dura

esticado nas árvores, dura mansamente sem

palavras nem coisas, sem tempo para

aguardar as mãos do caçador e as redes

mornas respirando sobre a água: aquilo

que amaste perdura.



António Franco Alexandre in Sem palavras nem coisas -  Lisboa: iniciativas editoriais, 1974


Wednesday, September 17, 2014

Às escuras

Caminhei sempre para ti sobre o mar encrespado
na constelação onde os tremoceiros estendem
rondas de aço e charcos
no seu extremo azulado

Ferrugens cintilam no mundo,
atravessei a corrente
unicamente às escuras
construí minha casa na duração
de obscuras línguas de fogo, de lianas, de líquenes

A aurora para a qual todos se voltam
leva meu barco da porta entreaberta

o amor é uma noite a que se chega só



José Tolentino de Mendonça in A Estrada Branca

Tuesday, September 16, 2014

Momentâneo


Alice: Quanto tempo dura o que é eterno?

Coelho: Às vezes, apenas um segundo.


Lewis Carroll in Alice no País das Maravilhas

Monday, September 15, 2014

Perfume

Fica sempre, um pouco de perfume nas mãos que oferecem rosas

Judite Junqueira Vilela in uma canção gospel 

Sunday, September 14, 2014

Interrogação

     
Que há? Abrem-se fendas no ar que respiro vejo-lhe o fundo. Tens os olhos vasados. Qual de nós os dois "quero-Te" gritou?

 Luiza Neto Jorge in Difícil Poema de Amor – Poesia - Assírio & Alvim - 2ª edição - 2001

Saturday, September 13, 2014

Linha de excelência


Friday, September 12, 2014

História incerta

Em última instância, a ideia de incompletude não só se mantinha, como se ia insinuando cada vez mais com o passar dos dias. Na ausência de oportunidades, o tempo parecia-lhe escasso e o que buscava sem saber parecia-lhe um fôlego demasiado longo. Todavia, o que lhe faltava, e que afinal, nos falhava a todos era na verdade um futuro.

Thursday, September 11, 2014

Passos

Nave
Ave
Moinho
E tudo mais serei
Para que seja leve
Meu passo
Em vosso
Caminho.

Hilda Hilst  in Exercícios - Trovas de muito amor para um amado senhor I

Wednesday, September 10, 2014

Por ti

Por ti desço até ao fundo da noite,
desenraízo o tempo, culmino numa estrela,
vivo na imaginação de todas as aves
e acendo o futuro, num gesto antecipado.


Albano Martins

Tuesday, September 9, 2014

Um olhar de distância

Fisicamente, nunca se teria sentido tão bem. A partir do momento que chegara, o olhar fugira-lhe em direcção ao infinito. O brilho do sol e o azul do céu e do mar davam cor ao cenário de calor e, acima de tudo, o presente era, definitivamente, o lugar. Depois disto, tudo iria, irremediavelmente, mudar. A tarde do dia seguinte nunca seria tão completa ou nítida. 

Monday, September 8, 2014

Tudo será perfeito

Imagina que deus te fez para mim.
como se a maravilha que vivo fosse só a
consequência da sua vontade.
imagina que tudo será perfeito, mesmo que, tão
precipitadamente, entendamos ter encontrado o que não existe.


valter hugo mãe

Sunday, September 7, 2014

Esperarei por ti

Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas
Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

Eugénio de Andrade

Saturday, September 6, 2014

Vivência urbana


Friday, September 5, 2014

Os preparativos

Quando a água começou a ferver, escaldou o bule para o chá, e foi trazendo para a mesa os biscoitos de manteiga acabados de sair do forno. A todo o instante ele estaria aí, evitando assim, aquela sensação de inquietude de última da hora. À partida tudo parecia calmo à luz ténue do final da tarde, e a sua atenção estava já dirigida para os minutos seguintes.  O silêncio propiciava um clima reflexivo e o contacto com alguém levava-a a imaginar o momento de partilha. 

Thursday, September 4, 2014

Espaço lunado

 Se perguntarem: das artes do mundo?
 Das artes do mundo escolho a de ver cometas
 despenharem-se
 das grandes massas de água: depois, as brasas pelos recantos,
 charcos entre elas.
 Quero na escuridão revolvida pelas luzes
 ganhar baptismo, ofício.
 Queimado nas orlas de fogo das poças.
 O meu nome é esse.
 E os dias atravessam as noites até aos outros dias, as noites
 caem dentro dos dias – e eu estudo
 astros desmoronados, mananciais, o segredo.

 Laranja, peso, potência

 Laranja, peso, potência.
 Que se finca, se apoia, delicadeza, fria abundância.

 A matéria pensa. As madeiras
 incham, dão luz. Apuram tão leve açúcar,
 tal golpe na língua. Espaço lunado onde a laranja
 recebe soberania.
 E por anéis de carne artesiana o ouro sobe à cabeça.
 A ferida que a gente é: de mundo
 e invenção. Laranja
 assombrosamente. Doce demência, arrancada à monstruosa
 inocência da terra.

 Não toques nos objectos imediatos

 Não toques nos objectos imediatos.
 A harmonia queima.
 Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
 são loucos todos os objectos.
 Uma jarra com um crisântemo transparente
 tem um tremor oculto.
 É terrível no escuro.
 Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
 A boca fica em chaga.

Herberto Helder


Wednesday, September 3, 2014

A interpelação

Ia capuchinho vermelho pelo caminho quando, de repente, encontra o lobo mau. Este, com uma voz muito doce, disse-lhe:
- Olá Capuchinho Vermelho! Que prazer conhecer-te!
Ela achou que o lobo mau até era simpático, ao contrário do que toda a gente dizia, incluindo a sua própria mãe. Mesmo assim, respondeu-lhe:
- Desculpe Sr. Lobo, mas a minha mãe proibiu-me de falar com pessoas que não conheço.
- Mas eu sou o lobo, o mais popular de todos os animais do bosque! Não há problema nenhum. Todos me conhecem bem! Onde vais com essa cesta?


Irmãos Grimm in Capuchinho Vermelho 

Tuesday, September 2, 2014

A viagem

As mágoas e fracassos do passado contrastavam com a alegria do presente, ainda que, de vez em quando, vertesse uma lágrima ou outra. Apesar de alguma nostalgia, em boa hora se teria recomposto sem que um dia jamais se assemelhasse ao outro. A noção do tempo que se perdeu e um certo sentimento de colapso iam-se tornando irrelevantes e os seus sonhos não pareciam perder-se nunca. Com efeito, lado a lado com os tons quentes do verão e o ritmo galopante dos dias, os dissabores acabariam inevitavelmente por se diluir e permitir-lhe readaptar-se. O tempo não apagaria memórias, mas transformava-lhe as fragilidades em mais-valias. O que viria a seguir seria, indiscutivelmente, uma trajectória ascendente.

Monday, September 1, 2014

O pasmo essencial

O meu olhar é nítido como um girassol.
 Tenho o costume de andar pelas estradas
 Olhando para a direita e para a esquerda,
 E de vez em quando olhando para trás...
 E o que vejo a cada momento
 É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
 E eu sei dar por isso muito bem...
 Sei ter o pasmo essencial
 Que tem uma criança se, ao nascer,
 Reparasse que nascera deveras...
 Sinto-me nascido a cada momento
 Para a eterna novidade do Mundo...
 Creio no mundo como num malmequer,
 Porque o vejo. Mas não penso nele
 Porque pensar é não compreender...

 O Mundo não se fez para pensarmos nele
 (Pensar é estar doente dos olhos)
 Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...

 Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...
 Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
 Mas porque a amo, e amo-a por isso
 Porque quem ama nunca sabe o que ama
 Nem sabe por que ama, nem o que é amar...

 Amar é a eterna inocência,
 E a única inocência não pensar...


 Alberto Caeiro